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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Ressurreição

Foto: Aglacy Mary | Sevilla

Ah! que nasce agora o meu desejo
de outro canto aos cantos revelar.
Alheia à dor que já me dei a exaltar,
ordeno meus versos em novo cortejo.
Rua larga e livre caminhar.

Aqui minha voz ensaia, em solfejo,
uma prenda que quer reverberar.
Despido de rugas, os meus olhos
nunca viram o que agora vejo.
Antes, um muro e silêncio no ar.

Hoje, luz infinda e mais um beijo.
Banco de imagens com que sonhar.


Leia também Ideias de uma infância.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Em guarda

Foto: Aglacy Mary

Que não nos abandone
a febre do peito
sentenciado
e não arrefeça em nós
o lume.

Que o precipitado

crepúsculo dos olhos
não nos faça renunciar
aos inéditos sabores
e ao destemido verso,
razão do êxtase
que não se entrega
ao sossego,
mas prefere as mãos
que nos tatuam linhas
sobre um canto qualquer
da alma.

Amém.



Você pode gostar de ler Oxidação.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Na cepa


Não dou por certo.
Espero que exista,
na vindima de cada desejo,
raiz inacabável
sonhando correr novo risco.

E que o mel
que não se beba
se demude noutro doce,
muito mais puro,
muito mais doce.

Leia mais: Outra cima.

Amor em zoons

Foto: Aglacy Mary | La Alhambra de Granada

Rasguei as fotos.
Nós dois 
em paisagens de outras línguas.
Formatei a memória da Canon.
Excluí a pasta do ultrabook.
Removi-a das retinas.

Se quiser novo álbum,
meu amor,
ajuste o foco
e me invente outras poses.
Reprograme o timer
e me ganhe, disparado,
luz diafragma adentro.

Você pode ler também Minha última madrugada.

Poema da perenidade

Foto: Aglacy en Sevilla

Beleza e tudo desbotam.
Tudo sai de moda.
Tudo é barro e se quebra
na fraga dura do tempo.
Nada é para sempre amém.

Minto!

Perene é o homem
em seu renovar
e repetir de paixões.

Por isso juro
e conservo a jura:
quando a vida nos fechar o chão
da inevitável sepultura,
uma flor há de se abrir na campa
e se espraiar no tempo.



Leia também Prato do dia.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Vida de alpendre

Eu brincando de desenhar com parcos recursos

Há perigos no ter a alma no alpendre,
mas é bem ali que está o viver.

Do alpendre
ideias se podem adentrar
em cozeduras de mim.
Do alpendre
elas se podem espraiar,
ir além do jardim.

Do alpendre a alma se prende e chora.
Do alpendre ela se engrama e ri.

domingo, 3 de novembro de 2013

Depois do quase se perder

 

Foto minha: Palacio de los Leones en la Alhambra
 
Carrego,
no dedo que indica,
uma fita vermelha
em nó de cetim.

Não é por acaso.

É mesmo pro caso
de eu me esquecer,
de novo,
de me lembrar
de mim.

sábado, 2 de novembro de 2013

Encontro a guincho


Desconfiei.
As rodas andavam
a me alimentar inveja
da velocidade dos jabutis.

Travaram.

Puseram-me para o lado
de fora da caixa
e me deram o tempo do zelo
por gestos
e verbos
na calçada da espera.

Por testemunhas, 
as estrelas 
de uma ordem inteira 

de gente da lei.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Anúncio

Foto: eu mesma | Palacios Nazaries Alcazaba

Ali,
depois da dúvida
que pouco sabe do quanto
um corpo é capaz de suportar
a perseguição do irresolvível,

mora um fato.

Certeza feita de 
altas doses de morfina,
dispensáveis 
daqui a poucas batidas.

Você também pode ler Outra cisma.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Adiantum

Foto: maosaterra.blogspot.com
Salve as avencas
de meu primeiro jardim
e a impermeabilidade
de suas folhas, 
que não se begonizam
sob as águas
que por sobre si deslizam.

Salve, das avencas,
seu jeito dado
de se esporar
em beirices d'água,
em terra escarpada
e subidas palmeiras.

Mas não sem exigências:
molhitude moderada
e atravessada claridade.

Ou as mãos sabidas
de dona Lucy.


Leia mais um pouco: Off/On.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Ornato


O tato me diz 
que tudo está 
certo,
que tudo está 
crespo,
enrolado,
preto, 
belo.

O tato confirma:
todo fio tem ornato. 
Tudo é volta,
parafuso, 
caracol 
em fino trato.

Meu tato
é extensão.
Mão da mãe 
guardada no tempo.
Desembaraço
de linhas,
desnovelos
de constrangimento.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Em memória


Cisco grosso. 
Invade os dois olhos
e faz doer 
como farpa de madeira
intrometida 
entre carne e unha.

A ciscaria veio
com a nota breve 
e desmusicada: 
Ela morreu.

Agora tudo se limita 
à irrevogável sombra.
Com cheiro de cimento novo
e velhos amigos
de boas memórias.

Se quiser ler mais, Tô de frase.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Meio assim

By eu mesma

não me queixo.
só lhe digo
que vivo
à beira das coisas.

quase falo,
quase esgano,
quase corro,
quase chego.

quase trágico:
quase amo.


Para você ler também: Tuas romãs.

domingo, 8 de setembro de 2013

Prosopis Juliflora

Foto: http://comitecaatingape.blogspot.com.br

Os dias de Zezo
cabiam bem
entre dois pés de algaroba.

Um sol inteiro,

um quinto de chão,
meio poço, 
a patroa,
seis meninos
e uns bodes.

Tudo balançando na mais perfeita

ordem de deus.

Até que aconteceu,

sem razão sabida:
Zezo trocou os bodes
por um cavalo,
e as algarobas
por uns paus de carroça
e uma vontade
de criar galhos.

Até hoje Zezo vai indo.


E suas algarobas
invadindo outros nordestes.


Leia também uma história: Gota d'água.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Cosecha

Ilustração: http://junglelegendperu.blogspot.com.br

Mis versos, recién nascidos,
requieren riego.

Mañana resistirán la sequía,

la tristeza de suelos áridos.

Y frutificarán.


Tal cual los árboles de marañón

durante el verano.

Tal vez ácidos,

pero sin las plagas del silêncio.


Leia Crespura.

domingo, 11 de agosto de 2013

Lustrare



Navego em terra seca
e, confesso,
perco o leme.

Por réu, aponto o horizonte,

que se faz ocre,
e cobre
a passagem de todos os dias.

Não sei se naufraga o futuro

em meu corpo sem lastro.

Ou se é o presente

que vai a Roma,
tomar banho de lustro.


Leia também À Mó.

sábado, 13 de julho de 2013

Oxidação

Foto: Aglacy Mary

O céu se encinza, e
eu me encharco de calor e luz.

Dá na rede a notícia da combustão.

A chama que se acende em mim
ou me consome, ou se morre toda
do raro ar de dentro aqui do peito.

O jornal do dia seguinte
apenas chamusca.


Abafaram o fogo.


Pra ler mais: Eu por mim...


Poema de julho

Libreria en Barcelona - Foto: Aglacy Mary

para o querido Prof. Luiz Alberto

Há gente que enraíza a gente 
enquanto lhe planta galhos.

Ele é o tipo.


O tipo dissertação e roteiro,
desde a primeira hora do dia.

O tipo adulto e menino,
mestre da bronca e da traquinada.

O tipo tradição e ruptura,
chaves de abrir caminhos.

Há gente que cresce e se espalha
e nos leva junto.

Ele é o tipo.



Você pode gostar de ler Roteiros.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Tramando o ócio


Dois pés de pau.
Um florido. De preferência.
E perfumado e sombroso.
O outro, se a sorte vier, dado a frutaria.
Entre os dois, há de se tecer a trama.
Que seja forte para sustentar
a leveza do sagrado ócio.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Disciplina – que conteúdo é esse?

Eu brincando de desenhar


Vivendo dias em que muitos de nós nos perdemos daquela organizadora rotina que nos acolhia em horas exatas para café, almoço e jantar, é preciso lembrar que disciplina não nasce com o indivíduo e depende de nós, adultos, organizarmo-nos para que tenhamos condições favoráveis ao aprendizado de mais esse conteúdo pelas crianças. 

A disciplina é uma construção que se empreende durante o processo de socialização, com o objetivo de que as relações aconteçam de modo mais harmônico, conforme regras estabelecidas e para a melhor execução das atividades diferentes a que nos propomos.

Disciplina se aprende pelo exemplo, pelos contratos firmados, pelo conhecimento específico do que diz respeito à regra em questão, pelo exercício de autoridade do adulto. Disciplinar é conduzir por regras, disso não se tem dúvida. Apesar de haver regras que não aceitam discussão, há muita ideia que se pode combinar com as crianças. 

Concordo com Lino de Macedo quando diz: “É como em um jogo. As regras são arbitrárias, mas a criança aceita porque gosta de jogar. Sem regra, não há jogo” (revista Nova Escola, edição 183 - junho/2005). Mas ouso discordar do mestre, a quem reverencio, quando afirma, sobre crianças de 2 a 6 anos, que “a argumentação científica não funciona com os pequenos”. Percebo, em minhas vivências com a Educação Infantil, que mesmo esses garotos e garotas são envolvidos pelo conhecimento novo, e isso pode levá-los a adotar, com maior compreensão, certas regras. Isso não serve como estratégia para todas elas – não mesmo –, mas que dizer da menina de 3 anos que fez sua mãe desistir, já dentro da loja, de comprar tal sandália da moda, com o argumento que aprendeu com o ortopedista, na escola, a respeito do salto alto para crianças? E do garoto de 4 anos que sempre desejara levar salgadinhos inadequados para o lanche e, depois de umas aulas sobre o efeito de certos ingredientes, disse numa manhã: “Oh, não! Por que minha babá colocou este lanche que é cheio de gutato nossódito? Vai estragar minhas papilastivas”. (Ele quis dizer “glutamato monossódico” e “papilas gustativas”, que aprendeu com a professora. 

Esses não são casos isolados. Pais são testemunhas de várias regras assimiladas desse modo. É evidente que precisaremos voltar muitas vezes à mesma fala quando tratamos de fazer cumprir determinações, mas esse fato, a meu ver, não anula o valor que teve o conhecimento científico, fortalecido, não ignoro, pela confiança do pequeno na palavra do adulto.

Noutro dia, uma mãe me falou de seu constrangimento: “Meu filho chamou-me de mentirosa porque eu disse que todos deveriam ir para a escola de uniforme, e ele viu colegas sem o tênis certo”. E o que disse a ele? “Que sua professora reclamaria dos outros meninos”. É importante, sim, que a professora observe o cumprimento das regras por todos, mas cada família faz sua parte. Numa sociedade laica, é claro que se pode descumprir o regulamento da instituição. E arcar com as consequências disso, obviamente. Não é assim fora da escola? Um motorista não se dá o direito de ultrapassar o sinal vermelho? Sim, mas é obrigado a assumir a pena imposta pela lei do trânsito.

Os pais não devem esquecer-se de que a criança ali ao lado está aprendendo... É preciso que pai e mãe considerem o que desejam ensinar a seus filhos, que valores orientam sua família. Insista em sua escolha, que é uma de muitas outras que virão. Mais tarde, lá pelos 12 anos de seu pequeno, é bem possível que você ouça: “Mãe, porque não posso ir sozinho ao show? A mãe de meu colega deixa”. É quando me lembro das mais sonoras palavras de minha mãe, que bem provavelmente também se incomodava com a concorrência, mas respondia com a segurança de que uma criança precisa: “Nossa família tem seu jeito de pensar e fazer as coisas. Para nossa família, isso é o que é certo, é nisso que acreditamos”. Sim, porque pai e mãe precisam versar sobre o certo e o errado, mesmo considerando que essas não são questões fechadas. 

A escola é um importante espaço onde códigos são construídos, onde o indivíduo aprende sobre o que é ou não socialmente aceito. Julgamos importante dar à criança a condição de saber conduzir-se conforme solicita a circunstância e dar-lhe, também, a possibilidade de apropriar-se das melhores ferramentas para a execução desta ou daquela atividade. Sim, não tendo apenas uma forma, a disciplina otimiza nossas mais variadas ações. Por isso, é um grande equívoco afirmar que aluno disciplinado é o que faz silêncio ou o que se mantém sentado por duas horas ininterruptas. Esse comportamento é adequado para uma modalidade de ensino. Num debate, diferentemente, a melhor disciplina supõe a conversa, alternando-se o falar e o ouvir; há técnicas que pedirão deslocamento pela sala ou outras áreas, pedirão saltos, corridas. O sujeito apropria-se dessas ferramentas e cria outras para adequar-se a novas situações. Assim, caminha para a autonomia.

Definitivamente, fazer o que quer à hora que quer, do jeito que quer é prática que deve ser desencorajada junto a nossas crianças. Elas precisam de espaço para atuar, para fazer escolhas, mas não dispensam a orientação do adulto. Organizar o ambiente para suas ações é imprescindível em casa e na escola. É o que inspira segurança.

Aglacy Mary
Leia também A quem educa boiada.

sábado, 15 de junho de 2013

Um louco em minha cena



Deram-me, por professor, um louco. Louco do tipo que dá enormidade aos olhos, quando mira a classe, e baba quando anuncia o tema do espetáculo que os normais costumam chamar de aula.
Passava o pente no cabelo denunciando a luta ganha pelo vento durante sua caminhada de dois quarteirões até nossa sala, e ninguém seria capaz de adivinhar a condição em que ficaria aquela generosa cabeleira ao fim do primeiro ato.
Quando começava a função, punha-se quase além das pontas dos pés, parecendo querer alcançar mais do que sua poderosa palavra podia. Num desses movimentos, por vezes, fixava o olhar em algum ponto onde, certamente, via algo invejável. Seu olhar lembrava o do meu amigo Nivaldo no dia em que, ganhando um brinde do vento, deitou os olhos, pela primeira vez, na costura da bainha da saia de Neiva.
Cinquenta minutos depois, acabava a cena. Sem dúvida, pela necessidade de que outra plateia também recebesse o convite ao delírio. Mas só se recompunha, de fato, no intervalo maior, o das dez e vinte, quando conversava sobre amenidades com os seus pares.
Hoje penso que esse louco tem parte da responsabilidade por meu show. E eu nem tenho mais seus autógrafos, desenhados, mês a mês, na ponta de uma Bic escrita fina, ratificando notas de 8 a 10, para o boletim.

Leia também Gota d'água.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Espelho meu. Ou, Eu me soube negra bem cedo

Eu me soube negra bem cedo, antes do interrogatório a que a adolescência submete o espelho. Isso me deu chão onde pisar e crescer, mas não sem rachaduras e ondulações no caminho. 
Ao abrir os olhos na maternidade de Aracaju, vi uma mulher morena clara, nariz afilado; cabelos tão lisos e finos, que escapavam das presilhas. Era minha mãe. Vi, também, um homem escuro. Seus cabelos eram bem crespos, daqueles onde se pode brincar de esconder coisas. O homem era meu pai. Comecei a ver pentes finos e outros de dentes largos e garfos de pentear. A convivência desses objetos já favorecia meu entendimento de que diferenças eram caprichos da natureza para enfeitar a vida. Houve mais, e eu soube mais tarde o quanto tudo era inevitável. Aconteceram histórias, as que ouvi e as que ainda protagonizo, aos 50 anos de idade, neste cotidiano de mulher negra e educadora. 
De mamãe, aprendi o amor e um sentido de família que trouxe meu avô de volta das férias forçadas pela opção política que fizera. Com ele, memórias vivas, como a da queima de sua biblioteca. As histórias de meu pai começavam nas manhãs de sua infância, ele com um tabuleiro de cuscuz na cabeça, obediente à minha severa e destemida avó viúva. O menino ganhou diploma e condição para dar aos filhos boas escolas e o melhor modelo de disciplina e honestidade.
O tempo de escola confirmou o prazer de ler, já aprendido na biblioteca de casa, e a descoberta de que ser negra era sinônimo de luta. Provei o conforto da construção de afetos, mas também a dor diante de verdades que a infância não esconde. A primeira foi a recusa de uns meninos, enchendo de nãos a professora que tentava arranjar-me par para a dança junina. Não entendia aquilo, pois o espelho ratificava minhas belas pretices, meu pai e a escola afirmavam minha inteligência. Mas eu já havia sido ferida antes, quando a dona do salão que minha mãe frequentava indicara o uso de henê para cabelo “ruim”. Aos 13 anos, porém, o pior: a diretora da escola confiscou minha dissertação com receio de que vencesse um concurso, e isso tornasse uma aluna negra a representante da instituição no estado. Felizmente havia uma Iara Vieira no caminho. A professora poetisa desengavetou o crime, a banca me deu o prêmio, e meu pai me tirou da escola.
O trabalho que realizo hoje na educação e minha presença no ambiente cultural de Sergipe apontam para a construção de um pensamento intelectual mais maduro, aquele que não prejulga e que respeita as diferenças que caracterizam negros, brancos, coloridos.

Você pode gostar de ler Tuas romãs.

domingo, 7 de abril de 2013

Lugar vazio

Praia do Saco | Foto: Aglacy Mary

(Inspirado numa ideia de vazio que aconteceu em Nena, dedicado a ela - poema que abre meu livro A Lavra)

Olhando para aquele lugar vazio,
Pergunto-me se você terá existido algum dia.
Aquele contorno suave e austero,
Aquele ligeiro meneio em que a cabeça ocultava uma nesga de riso,
Aquele segundo em que as pálpebras se erguiam
E desvelavam silêncios que insistiam em amanhecer,
Aquela nobre e desencorajadora compostura,
Aquele cenho que se franzia no esforço insistente de ver mais,
O olhar esgazeado de quem, por outras vezes, não enxergava nada... Tudo.
Tudo talvez
Existisse apenas porque meu olhar se destinava passadiço,
Feito bordado nascido na ideia,
Sorrateiro como estes traços de tinta, que deixam escorrer
Pensamentos nervosos, borrados de indecisões,
Perdidos entre o ocaso precoce e o surpreendente alvorecer.
Recordo que ali havia um ou dois retratos.
Quem os teria banido?
Que fanática aversão teria desaguado em tão infame abandono?
Cultivo agora esta aura de abatimento e luto
Pela falta da alegria incontida, que, por tantas vezes,
Afastou-me de você.
Meu corpo anunciava a hora: precisava andar aos saltos,
Rodeando-me de espaço para proclamar o meu amor.
Grave e doloroso.
De uma dor querida, indesejosa de anseios de rebelião.
Não se aflija com a exibição rumorosa de meus sentimentos;
Agora que eles ganham os ares, recupero a sanidade
Nascida da tristeza do depois do amor.
Agora vejo de novo as flores amarelas caídas no pátio
E ouço o roçar das asas cantoras do meio-pássaro.
As árvores existem ainda, com suas primaveras nupciais,
Que constroem emaranhados ninhos nos corações desavisados.
O amor existe ainda, ainda que eu não o toque,
Ainda que seu perfume não invada meu quarto,
Ainda que sua imagem fuja do enquadramento da minha janela.
Lacunoso esse amor.
Que ondeia, avoluma-se e se exaure
Para depois brotar de novo, em minh'alma esvaziada.
Agora é pranto de açucena, largo e silencioso,
Sem lugar para vertiginosas expressões e provas exuberantes.
Não mais.
Agora eu me avesso ao encontro de mim.


Leia também Fissura.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Reza

para Gabriela Correia

que o poço seja raso
o píer seja ponte
o pé não perca o breque
pouca altura tenha o monte

ou que não me falte coragem


quarta-feira, 27 de março de 2013

De volta ao ponto

Foto: minha mesmo

numa ponta da pá
meu medo e eu

ele a esconder pergunta
e eu remanchando resposta

da pá, a outra ponta 
cavouca lugar ermo em mim

dali ainda ouço o medo

remexo
embora ainda remanche

domingo, 24 de março de 2013

Da boca pra fora

Foto: minha mesmo | Olhando o tempo em Alhambra

para Clouse Marinho

um sorriso
um sussurro
um grito
um sim 
ou não
bem dito

sentimento
da boca pra dentro
atitude
da boca pra fora
para que as caladas coisas
não protagonizem
as rugas
que comecem
a nos desenhar a face

Coisa antiga

Para Nena, a imagem e o poema

quando o poema novo
quer contar coisa já dita,
a palavra vem assim,
de forma dificultosa.

já esculpida uma vez,
primeiro é esta procura
que não sabe onde achar
imagem mais caprichosa.

o bom mesmo é não largar
a intenção do começo
e deixar de lado o risco
de palavra aparatosa

meu poema quer somente
deixar ver o amor que corre,
maior que o amor de ontem,
em veia tão caudalosa.

sábado, 9 de março de 2013

Outra cisma

Foto: minha mesmo | Espiando o fazer dos outros

desde a última escrita do testamento, 
a morte cismou comigo.

em vez de cisma de ataque,
ela cismou de abandono.

eu olho,
ela me nega.
diz não vem.
desistiu
pra nunca mais.

sei que me ilude
e,
mais sabida,
sabe que agora
gosto
de outra cantiga.

dei-me a gozar
gozos novos,
daqueles de arrumar mesa
e chamar visita.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A primeira vez - o poema

Foto: Minha mesmo | Chão de Sevilla

Minha primeira morte
foi mansa.
Quase um brinquedo.

Sabida das dores
que os adultos gemiam,
no mesmo tanto
me interessava
o som apitado
pelo pulmão quase faltoso
daquele homem.

Do silêncio do apito
sentinela
à descoberta de que o sangue
não corrente na veia
gela,
foi só o tempo de calçar as meias
do morto
e ouvir a bronca da viúva
diante da intrepidez
dos meus doze anos.

Você deve ler, também, o pequeno conto que originou o poema: "A primeira vez".

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Prato do dia

Foto: Minha mesmo

O que sabia era que aquele seria um almoço comum na companhia de uma amiga. Evento provavelmente não muito sossegado, pois o restaurante ficava em um shopping, e o horário... bem, era horário de almoço em shopping.
Fui até o balcão do restaurante, fazer os pedidos, enquanto minha amiga ficara guardando nosso lugar à mesa escolhida. Fiz o pagamento. Enquanto esperava o troco, pausei meu olhar no lado direito, observando o movimento comum de pessoas discutindo gostos, escolhendo pratos, comendo. Tudo tão normal e tão tenso... Lembrei-me de que não gosto daquela vitrine, de que não gosto de me ver nela. Virei a cabeça para o outro lado, mas logo voltei a olhar para a frente, para a moça do caixa, que enganchara seu serviço na gaveta que antes abria automaticamente. Algo, porém, fez com que eu quisesse retomar a visão do que havia à minha  esquerda. Não sabia ao certo... voltei-me discretamente, por um segundo apenas, e percebi alguém que me olhava. Ele estava ali, a uns 2 metros apenas. De pé, uma mão no bolso, que eu me lembre. Um charme. Não me lembrava de que já o tivesse visto antes. Sabe quando você não quer entregar-se à curiosidade, mas sabe que não vai resistir? Reconheci o desejo de retribuir o olhar para não me arrepender depois. Queria também identificar detalhes que faziam com que aquela figura me parecesse tão atraente em um simples olhar de clareza duvidosa. Estava disposta a olhar mais demoradamente e confesso uma arritmia temporária. Olhei. E vi. Não restou dúvida. Ele mantinha os olhos fixos em mim, na intenção de dizer algo. Era um Jack Bauer de papelão, tamanho natural, ao lado de um carro cuja marca sei lá qual era.
Nem me lembro do prato que engoli. A seco.


Você pode ler também E o pau comeu.  

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Sob velha direção

Esperando | Foto: Aglacy Mary
naquele mesmo ritmo
feito molho esperando a massa
feito esterco esperando a horta
feito campo esperando o trigo
feito enzima esperando o pão
feito ébano esperando o músico
feito coco esperando o samba
feito água esperando a sede
feito ideia esperando a tela
feito forno esperando o barro
feito lacê esperando a renda
feito lenha esperando o frio
feito grito esperando o medo
feito dia esperando a regra
feito doce esperando a moça
feito amor esperando o peito
feito porvir esperando o verme