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sexta-feira, 10 de julho de 2015

De pedra e flor


carrego flores
mas não carrego flores 
somente.

vês o colorido em minha lapela
e não pões reparo nos bolsos de trás.
é lá que guardo todo cascalho
que me esfolia as vontades no caminho.

não é a flor, mas o grão de areia.
não é a flor, mas o seixo.
não é a flor, mas a pedra de cantaria.
isso é o que me desafia a ser quem sou.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Tempos de madrugar

Portinari

hoje eu tenho medo dos anos.
dos nossos primeiros anos.
daqueles que ainda estão fora da lei.
daqueles que continuam no ponto cego
dos olhos turvados da educação.

acordem, crianças!
o recrutamento começará mais cedo.

De que se veste o amor - 2


quinta-feira, 25 de junho de 2015

De que se veste o amor


Sol ardente

Sol ardente | Van Gogh

vejo o dia cuspindo labareda
na tela onde você se arrisca
a fazer solo de pincel.
imóvel como mulher antiga
esperando cortejo,
faço uma reza e desenho plano
de apagar incêndio porque sei:
o mesmo sol que bronzeia arde.

Passa, mas não passa


todo amanhecer é um juntar de histórias.
o que aconteceu um dia não passa nunca.
o que passa [devagar como andor
em procissão de morto grande
ou num ligeiro de colibri a cortejar fêmea]
é a dor do sangue vertido em cada ato
é a sensação do gozo que foi alcançado.
todo amanhecer reúne vozes antigas.
o que aconteceu um dia não passa nunca.
mas passa.

Receita de não salgar moqueca

Quero ver se esse peixe não toma gosto!

Já saibam que eu andava gabola pelos feitos culinários daqueles dias. Tudo começou com a empolgação pelo primeiro caldinho de sururu e por ter motivo para me sentir competente na autoria desse tipo de arte. Aconteceu que, na mesma semana, tornei pública a melhor rabada que eu já provara — feita com um incrível segredinho de batatas, dica do ex-marido —, e a delícia fez sucesso entre todos os convivas (é certo que minha especialidade à época teve apenas familiares para dar nota, mas são todos sinceros, eu juro).

Aproveitando a maré de alta performance, aventurei-me numa moqueca de cação e comecei a fazê-la do começo. Não, não pesquei o tubarãozinho da carta de Pero Vaz, mas fui escolher o que havia de melhor nas bancas do Mercado Central e não escondo que a assessoria do meu irmão mais velho foi decisiva para o bom desempenho nessa parte da tarefa.

Para a etapa cozinha, eu apostava no conhecimento que adquiri quando escalada para assistente de minha mãe nos deliciosos almoços da melhor parte de minha vida. Cabia-me machucar uns temperos e picar outros. Depois ficava ali, empenhada na mexidinha do caldo, até a fervura do leite de coco, que era para não talhar (será que talha?)

Tudo estava sob controle, e eu não queria perder aquilo salgando demais o prato. Por isso, fui naquele ritmo medroso, para acrescentar ao invés de ter que aplicar estratégia de retirar o sal da moqueca. Primeira prova e... humm... sal nem de longe. Pus um bocadinho mais, ainda timidamente. Segunda prova, e uma pequena alteração no sabor, mas nem um indivíduo hipermegatenso e sem medicação sentiria aquilo. 

Era chegada a hora em que uma cozinheira de faz-de-conta perde o prumo. Enchi a mão. "Quero ver se esse peixe não toma gosto!" Tomou. Gosto de açúcar. Até hoje minha boca se enche de doce quando vê uma moqueca.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

De passagem

Da janela - de Madri a Barcelona

No instante do acordar,
bem aquele em que meus
olhos piscam pro acender
e se lembram de que tudo
foi ontem, confiro o papel
da passagem e nem sempre
reconheço a estação. 


Bilheteiro, o destino!
A resposta é arranque
maquinado num verbo: 
seguir.

Na veia

Da minha página Diminutas


A vida em gotas

Foto: Gabriela Correia

Em cada gota de soro,
pinga na veia a severidade
dos amanheceres maternos
nas calçadas da meninice.
Em cada gota, pinga
a saudade mal sentida
do pai que cedo se fez retrato
na galeria da vida dos netos.

Pinga na veia
a expectativa do encontro
com a mocinha do pontilhão,
que lhe daria seis prendas.

Em cada gota de soro,
um mergulho de volta
no mar de seu sangue.

sábado, 7 de março de 2015

Pauta única


Nada é coisa à parte.
Nem a Grécia.
Nem a Indonésia.
Nem a consulta
médica.
Nem a minha questão
doméstica.
Nem a nossa relação
cinética.
Tudo existe.
Tudo exige.
Tudo insiste.
Tudo é grave.
Tudo urge.
Tudo arde.

Sete mortes por semana


Hoje eu morro
de novo,
mais um pouco.
E no depois
dessa morte
que me morre
todo dia,
preencho falha,
promovo troca,
removo erro.
E vou ali
virar broto
em pé de gente.

Do adeus


Um dia eu dei 
meus olhos aos teus
e arrisquei pedaço
de meu breu.
Agora, quando
seus olhos pousam
sobre meus olhos
esse brilho ateu,
sei que é hora.
Vamos embora.
Seu lugar do meu
lugar se perdeu.

Sem sentidos


O dia nasceu, e eu estava triste.
A música tocou, e eu estava triste.
Minha escola ganhou, e eu estava triste.
Serviram maniçoba, e eu estava triste.
O jogo empatou, e eu estava triste.
O exame deu negativo, e eu estava triste.
O motorista chegou, e eu estava triste.
Trouxeram-me estrelas, e eu estava triste.
Tristeza assim é anestesia.
Um não saber olhar.
Um não saber querer.
Um não poder sentir alegrias.

Um sonho, uma rega


Todas as cento e dezessete rosas
que floriram no Natal daquele ano
me acordaram hoje pedindo rega.
E eu, que me arreceio de sonho
de madrugada-sentinela, obedeço.
Recolho as promessas de jardim
e todo instrumento de que careço,
e planto esperança em canteiros.
Para quem não é muito de se dar
a suores, mas aprecia a arte que
cavouco em mim, planto também
um batente de janela e um copo
de café num fumegar sem fim.

Focum


Tudo é possível
quando se acorda
com nova lente.
Até se olhar
no espelho
e ver tudo igual
e ter vontade
de pegar fogo
e fazer tudo
diferente.
Tudo é possível.
Até começar
novamente.

Tome nota


Precisa-se de bloco de notas
com número de páginas suficiente
para guardar cores e sabores 
sem conta, de um domingo dado
à monocromia azul de Picasso.

Que se anote o lugar do guardado
e que se traga de lá, caso minha
memória careça, um bocadinho de
carmim e um retalho de jade, um ramo
de alecrim e uma semente que arde.

Rua de dentro


No dia em que resolvi
sair, foi assim: apaguei luz,
tranquei porta, escondi chave.
Abertos, porém, os olhos
de minha cega companhia
para ver o que havia em
minha mais negra escuridão.
Desde o dia em que resolvi,
saí. Pés no chão encerado,
deslizes pra dentro de mim.

É Carnaval


Mora uma paz no 
carnaval que freve 
em meus pés,
ainda que deva
construir pistões
e regular de meus
lábios a pressão
para controlar o
desembesto do ar
que corre
no trompete
da minha mais
complexa
e desejada canção.

Tranças


Tranças me tiram do sério.
São brinquedo de menina,
passatempo de mim mesma.
São histórias que desfilam
no salão de minha beleza.
Tranças me esticam ideias.
Tracionam o neurônio ermitão,
morador do lugar mais secreto,
de lá do fim dos recônditos
de que é feito meu cérebro.
Tranças me trazem afetos.
Para novo mapa de tesouros,
digite senha de carinhos
que guardarei em segredo.
Tranças me fazem caminhos.

A poesia sente


hoje a poesia me acordou
para contar
que morreu a moça grávida 
na porta do hospital sem médico
e que o malnascido bebezinho
não terá leite.
nem peito, nem ninho.
hoje a poesia me acordou
para contar
que a senhora vai tardar
a chegada no trabalho
porque o ônibus da hora
se não faltou, ou quebrou
ou demora.
hoje a poesia me acordou
para contar
que uma criança ficou
sem aula e outra foi mal
na prova. falta cimento
para a construção e
para o resto, argumento.
hoje a poesia me acordou
para contar
que faltou luz na cidade
e o casal da fita tem
the end com problema:
ser feliz para sempre
cancelado o cinema.
hoje a poesia da vida
me acordou corroída.
nela surge uma vontade
que morre sem o incentivo
que faz da rima uma ação.
e tudo que nos falta hoje
sobra em corrupção.

Pela minha madrugada


uma madrugada se falte em mim
que dou blackout de corpo inteiro
e a casa se veste de luz nenhuma.
nuvem cobrindo sol
vulcão tossindo cinza
floresta até o talo incendiada.
dark day no Canadá do meu quarto.
uma madrugada se falte em mim
que minha poesia se perde
e no escuro eu apenas vejo
o escuro que há no escuro.

Memoriado amor


o amor se lembra de mim
no tato. ele fecha os olhos
para ver a euforia do fim e 
do começo do dia em que
bate à porta da textura de
toda a minha companhia.
o amor se lembra de mim
no prato. perde-se, em agonia
de come-doce, e se arrepende
da festa feita de ambrosia.
o amor se lembra de mim
no trato. ele diz bons-dias
depois de noites cheias
de madrugadas de afasia.