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sábado, 7 de março de 2015

Pauta única


Nada é coisa à parte.
Nem a Grécia.
Nem a Indonésia.
Nem a consulta
médica.
Nem a minha questão
doméstica.
Nem a nossa relação
cinética.
Tudo existe.
Tudo exige.
Tudo insiste.
Tudo é grave.
Tudo urge.
Tudo arde.

Sete mortes por semana


Hoje eu morro
de novo,
mais um pouco.
E no depois
dessa morte
que me morre
todo dia,
preencho falha,
promovo troca,
removo erro.
E vou ali
virar broto
em pé de gente.

Do adeus


Um dia eu dei 
meus olhos aos teus
e arrisquei pedaço
de meu breu.
Agora, quando
seus olhos pousam
sobre meus olhos
esse brilho ateu,
sei que é hora.
Vamos embora.
Seu lugar do meu
lugar se perdeu.

Sem sentidos


O dia nasceu, e eu estava triste.
A música tocou, e eu estava triste.
Minha escola ganhou, e eu estava triste.
Serviram maniçoba, e eu estava triste.
O jogo empatou, e eu estava triste.
O exame deu negativo, e eu estava triste.
O motorista chegou, e eu estava triste.
Trouxeram-me estrelas, e eu estava triste.
Tristeza assim é anestesia.
Um não saber olhar.
Um não saber querer.
Um não poder sentir alegrias.

Um sonho, uma rega


Todas as cento e dezessete rosas
que floriram no Natal daquele ano
me acordaram hoje pedindo rega.
E eu, que me arreceio de sonho
de madrugada-sentinela, obedeço.
Recolho as promessas de jardim
e todo instrumento de que careço,
e planto esperança em canteiros.
Para quem não é muito de se dar
a suores, mas aprecia a arte que
cavouco em mim, planto também
um batente de janela e um copo
de café num fumegar sem fim.

Focum


Tudo é possível
quando se acorda
com nova lente.
Até se olhar
no espelho
e ver tudo igual
e ter vontade
de pegar fogo
e fazer tudo
diferente.
Tudo é possível.
Até começar
novamente.

Tome nota


Precisa-se de bloco de notas
com número de páginas suficiente
para guardar cores e sabores 
sem conta, de um domingo dado
à monocromia azul de Picasso.

Que se anote o lugar do guardado
e que se traga de lá, caso minha
memória careça, um bocadinho de
carmim e um retalho de jade, um ramo
de alecrim e uma semente que arde.

Rua de dentro


No dia em que resolvi
sair, foi assim: apaguei luz,
tranquei porta, escondi chave.
Abertos, porém, os olhos
de minha cega companhia
para ver o que havia em
minha mais negra escuridão.
Desde o dia em que resolvi,
saí. Pés no chão encerado,
deslizes pra dentro de mim.

É Carnaval


Mora uma paz no 
carnaval que freve 
em meus pés,
ainda que deva
construir pistões
e regular de meus
lábios a pressão
para controlar o
desembesto do ar
que corre
no trompete
da minha mais
complexa
e desejada canção.

Tranças


Tranças me tiram do sério.
São brinquedo de menina,
passatempo de mim mesma.
São histórias que desfilam
no salão de minha beleza.
Tranças me esticam ideias.
Tracionam o neurônio ermitão,
morador do lugar mais secreto,
de lá do fim dos recônditos
de que é feito meu cérebro.
Tranças me trazem afetos.
Para novo mapa de tesouros,
digite senha de carinhos
que guardarei em segredo.
Tranças me fazem caminhos.

A poesia sente


hoje a poesia me acordou
para contar
que morreu a moça grávida 
na porta do hospital sem médico
e que o malnascido bebezinho
não terá leite.
nem peito, nem ninho.
hoje a poesia me acordou
para contar
que a senhora vai tardar
a chegada no trabalho
porque o ônibus da hora
se não faltou, ou quebrou
ou demora.
hoje a poesia me acordou
para contar
que uma criança ficou
sem aula e outra foi mal
na prova. falta cimento
para a construção e
para o resto, argumento.
hoje a poesia me acordou
para contar
que faltou luz na cidade
e o casal da fita tem
the end com problema:
ser feliz para sempre
cancelado o cinema.
hoje a poesia da vida
me acordou corroída.
nela surge uma vontade
que morre sem o incentivo
que faz da rima uma ação.
e tudo que nos falta hoje
sobra em corrupção.

Pela minha madrugada


uma madrugada se falte em mim
que dou blackout de corpo inteiro
e a casa se veste de luz nenhuma.
nuvem cobrindo sol
vulcão tossindo cinza
floresta até o talo incendiada.
dark day no Canadá do meu quarto.
uma madrugada se falte em mim
que minha poesia se perde
e no escuro eu apenas vejo
o escuro que há no escuro.

Memoriado amor


o amor se lembra de mim
no tato. ele fecha os olhos
para ver a euforia do fim e 
do começo do dia em que
bate à porta da textura de
toda a minha companhia.
o amor se lembra de mim
no prato. perde-se, em agonia
de come-doce, e se arrepende
da festa feita de ambrosia.
o amor se lembra de mim
no trato. ele diz bons-dias
depois de noites cheias
de madrugadas de afasia.