História publicada no Jornal Cinform |
Mali tinha sete anos e morava no alto de uma ladeira de pedras, de onde podia ver sua cidade inteirinha. À noite parece que daquele lugar era possível enxergar todas as luzes do mundo – as do céu e as de baixo. Mali via todas com o queixo apoiado sobre as mãos cruzadas no parapeito da janela de seu quarto.
A menina não podia ficar debruçada em seu privilegiado mirante por muito tempo. Logo nos primeiros claros do dia, tinha a tarefa de costume.
O galo cantou em algum lugar do morro, e Mali saiu de casa com uma blusa comprida de mangas três quartos, uma calça de linha, um par de tênis com meia, meio pão na mão direita e uma corda na esquerda. A outra ponta da corda amarrava um tonel vazio que ela deixava rolar ladeira abaixo, dando mais ou menos corda conforme as novidades do caminho. Enquanto descia ela chutava pedrinhas e cantarolava trechos de uma cantiga de roda. Depois da segunda curva da descida um bocado íngreme, Mali encontrou os meninos de sempre. Eles ameaçavam tomar-lhe o pão, mas desistiam diante da cara enfezada que a pequena exibia e da fama de ter tirado sangue da testa de um garoto mais velho. Na verdade, o sangue aconteceu, mas foi por puro acidente. O importante é que a fama da menina pegou. Já na última curva, apareceu Valente. Não se trata aqui de outro menino com mania de briga. Este tinha um pelo bem ralo, nariz comprido, rabo curto do tipo toquinho mesmo. Era um vira-lata que vez ou outra ficava solto na rua e por quem ninguém daria nada se não fosse a coleção de suvenires que ele tinha feito de tanto alcançar desavisados que passavam à sua porta. Valente desafiou a coragem de Mali, Mali confirmou a ousadia de quase sempre. A menina fez de conta que o bicho não existia e, altiva, desfilou pela porta da fera, que acompanhou o seu passar, admirado como um súdito ao ver sua rainha pela primeira vez.
Mali chegou à torneira do Beco 5, uns trezentos metros depois do pé da ladeira. A fila estava pequena ainda, com somente doze à sua frente. O dia já estava realmente claro quando chegou sua vez. Ela não encheu o tonel porque não podia. A fila que se formara desde que ela chegou ao beco não permitiria isso, e ela mesma não conseguiria puxar corda e tonel cheio ladeira acima, curva após curva.
Agora ela voltava e já sentia o peso da carga antes mesmo do início da subida. Torcia para que Valente já tivesse sumido do seu caminho, mas sua torcida foi vã. Ele não só estava como rosnou ao vê-la puxando aquela coisa e olhando de banda. Hora de planejar uma estratégia. Sim! Passar esticando a corda até se distanciar da pequena fera e depois, aí sim, puxar o tonel. “Tolice!” Resolveu enfrentar logo a situação do modo mais comum. Valente acompanhou a cena e se comportou como um bom totó. Ufa!
Agora a heroína faltava apenas vencer as pedras e as curvas da ladeira, desta vez numa subida e com um peso digno dos músculos do pai que não tinha. Ela chegou ofegante ao portão de madeira. Ofegante, suada e vitoriosa. Deu mais uns puxões na corda, pondo o tonel para dentro. No último puxão... opa! quase ergueu o peso, que voltou ao chão encontrando uma pedra que fez saltar a tampa do vaso. Posicionado num declive, o tonel deixou fluir a água numa velocidade maior que a condição que Mali possuía de sair do estado de perplexidade, para tentar evitar o pior. A água se foi. Até a última gota. A menina foi também. Ladeira abaixo, outra vez, de curva em curva, até o Beco 5.
Texto de Aglacy Mary
O galo cantou em algum lugar do morro, e Mali saiu de casa com uma blusa comprida de mangas três quartos, uma calça de linha, um par de tênis com meia, meio pão na mão direita e uma corda na esquerda. A outra ponta da corda amarrava um tonel vazio que ela deixava rolar ladeira abaixo, dando mais ou menos corda conforme as novidades do caminho. Enquanto descia ela chutava pedrinhas e cantarolava trechos de uma cantiga de roda. Depois da segunda curva da descida um bocado íngreme, Mali encontrou os meninos de sempre. Eles ameaçavam tomar-lhe o pão, mas desistiam diante da cara enfezada que a pequena exibia e da fama de ter tirado sangue da testa de um garoto mais velho. Na verdade, o sangue aconteceu, mas foi por puro acidente. O importante é que a fama da menina pegou. Já na última curva, apareceu Valente. Não se trata aqui de outro menino com mania de briga. Este tinha um pelo bem ralo, nariz comprido, rabo curto do tipo toquinho mesmo. Era um vira-lata que vez ou outra ficava solto na rua e por quem ninguém daria nada se não fosse a coleção de suvenires que ele tinha feito de tanto alcançar desavisados que passavam à sua porta. Valente desafiou a coragem de Mali, Mali confirmou a ousadia de quase sempre. A menina fez de conta que o bicho não existia e, altiva, desfilou pela porta da fera, que acompanhou o seu passar, admirado como um súdito ao ver sua rainha pela primeira vez.
Mali chegou à torneira do Beco 5, uns trezentos metros depois do pé da ladeira. A fila estava pequena ainda, com somente doze à sua frente. O dia já estava realmente claro quando chegou sua vez. Ela não encheu o tonel porque não podia. A fila que se formara desde que ela chegou ao beco não permitiria isso, e ela mesma não conseguiria puxar corda e tonel cheio ladeira acima, curva após curva.
Agora ela voltava e já sentia o peso da carga antes mesmo do início da subida. Torcia para que Valente já tivesse sumido do seu caminho, mas sua torcida foi vã. Ele não só estava como rosnou ao vê-la puxando aquela coisa e olhando de banda. Hora de planejar uma estratégia. Sim! Passar esticando a corda até se distanciar da pequena fera e depois, aí sim, puxar o tonel. “Tolice!” Resolveu enfrentar logo a situação do modo mais comum. Valente acompanhou a cena e se comportou como um bom totó. Ufa!
Agora a heroína faltava apenas vencer as pedras e as curvas da ladeira, desta vez numa subida e com um peso digno dos músculos do pai que não tinha. Ela chegou ofegante ao portão de madeira. Ofegante, suada e vitoriosa. Deu mais uns puxões na corda, pondo o tonel para dentro. No último puxão... opa! quase ergueu o peso, que voltou ao chão encontrando uma pedra que fez saltar a tampa do vaso. Posicionado num declive, o tonel deixou fluir a água numa velocidade maior que a condição que Mali possuía de sair do estado de perplexidade, para tentar evitar o pior. A água se foi. Até a última gota. A menina foi também. Ladeira abaixo, outra vez, de curva em curva, até o Beco 5.
Texto de Aglacy Mary
E que tal O sapo?
Soltei a respiração agora...
ResponderExcluirAprendi com você sobre resiliência, Joelba.
ResponderExcluirMeu coração ficou apertadinho. A necessidade é um belo exemplo de resiliência.
ResponderExcluir