Ela preparava a comida, arrumava a mesa, tomava um banho, servia o marido e os filhos. Depois, como quem apreciava um Picasso restaurado pelas próprias mãos, admirava a cena. Corrigia os gestos do mais novo, controlava o tempo do mais velho, estimulava os gêmeos, aguardava o tempo de todos e um elogio do companheiro. Satisfeita por satisfazer sua cria e o homem com quem estava casada há tantos anos, levava os pratos sujos à pia e voltava à mesa, onde sentava e se servia. Que ninguém a incomodasse. A hora agora era santa. Gostava de comer o que cozinhava e de ruminar pensamentos que só lhe ocorriam ali, na paz da metade das tarefas cumprida. Depois disso seguia para a outra metade do dia, que terminava com algum prazer antes de dormir.
Essa vida ganhou curso longo, e a mulher nunca mais se imaginou sem as repetitivas atribulações da casa enorme; sem as necessidades e os desejos dos quatro filhos; sem as cobranças do marido reconhecidamente exigente. Aconteceu, todavia, de os filhos ganharem corpo e vida próprios e de o esposo morrer antes do combinado feito nos melhores tempos daquele romance.
Os procedimentos decorrentes da morte dele ela administrou com a mesma calma com que tratava toda questão doméstica, da escolha das marcas dos produtos de limpeza à seleção dos pedreiros em tempos de reforma. Saiu do cemitério pouco concorrido, deixou os filhos no aeroporto e voltou à casa, agora maior, silenciosa e sem demandas que não fossem de tapetes por lavar, cristais por dar brilho, livros para reler, filmes para ver. Os dias seguintes precisaram ser inventados. Alguns lugares à mesa e saudoso cardápio: carne de panela, moqueca de cação, frango com quiabo e dois tipos de salada. Doce de leite em bolotas, doce de banana em rodelas e outro batido, para agradar as crianças. Às vezes vinho, às vezes café. Servia-se e imaginava satisfeitos os fictícios convidados. Eles talvez; ela, porém, queria mais.
Jogou fora os comprimidos, esvaziou as caixas de fotos e se encheu de lembranças. Encontrou ali o único baile e uns finais de semana na praia. Flagrou o solitário bilhete de cinema e os papéis que resistiram: mãe, esposa, dona de casa.
Para surpresa de quem desconhecia parte do roteiro de sua vida, foi ao teatro. Há quanto tempo não pisava naquele lugar? Na verdade desde que... Preferia não confessar a si mesma a renúncia que um dia fizera. Dedicação, sonho, grandes possibilidades, tudo deixado no meio de um caminho. Ela foi mesmo ao teatro. Repetiu a dose no final de semana seguinte e nos cinco próximos, tornando-se plateia cativa do mesmo espetáculo, cuja história já conhecia de suas permitidas leituras de cabeceira.
Quando o tempo, que era também de compras de verduras e peixes no mercado, seguia para a 8ª. semana do musical, aconteceu o fato largamente noticiado pela imprensa: “Atriz Lena Villani, protagonista de ‘Um dia sem almoço’, em cartaz no Teatro Luiz Carlos Reis, sofre uma isquemia cerebral”. Desligou o rádio, estacionou o carro, deu um telefonema, tomou outra direção acelerando como se tivesse tudo a ver com aquela trágica realidade. Já no teatro dirigiu-se aos camarins, com jeito parecido com o de quem sempre teve o acesso liberado. Encontrou o diretor da peça e lhe disse tudo.
No final daquela semana, uma poltrona ficou vazia na plateia, e a espectadora assídua nunca mais deixou o palco.
Autora: Aglacy Mary
Esta é mais uma publicada no Caderno de Cultura do Jornal Cinform - 06 a 12 de dezembro de 2010, Ano 28, Edicão 1443
Experimente também "E o pau comeu"
Experimente também "E o pau comeu"
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Diga, então...