Cinform - Aracaju-SE, 18 a 24 de outubro de 2010 - Ano XXVIII, edição 1436 |
Não sabia se havia tristezas na vida. Eu era muito menina. Meu único desagrado era mesmo a solidão das manhãs. Solidão de quatro irmãos, todos saindo para a escola, e eu, por trás da grade baixa de um muro baixo de uma casa de portas de vidro sem cadeados ou sistema de alarme, acenando e embalando minha vontade.
No último dia de outubro daquele 1970, porém, minha mãe anunciou, bem no meio do jardim de rosas brancas:
— Agora que fez cinco anos, filha, está pertinho do tempo de ir à escola.
Foi a melhor notícia da minha vida. Só era preciso esperar o Natal, depois a Festa de Ano mais o Carnaval. Não. Ainda teria que ver passar o aniversário de meu irmão. Não. O primeiro dia de aula era justo o dia do aniversário dele. Eu bem lembrava disso porque o danado culpava, por tamanha coincidência, umas tias nossas, professoras primárias.
Dona Lívia, minha madrinha, que me dera presentes tão especiais quanto aquele seu jeitinho doce de andar, sorrir e falar, comprou-me a merendeira mais moderna — hoje desandaram a chamar aquilo de lancheira, como chamam meus antigos diademas de tiaras —, que tinha até garrafa térmica e uma trava que fazia plac!, um barulhinho que era sucesso na escola. O leite estava sempre morninho quando o badalo do sino anunciava a pausa entre as lições de aritmética e os exercícios de caligrafia.
Dali a mais dois anos, minha letra já era muito elogiada. É verdade que saía da linha, vez sim, vez não, mas poucas vezes a diretora me fazia apagar tudo. O problema era a tabuada. Não. Não era a tabuada o problema. O problema era dizer a tabuada em companhia de um pedaço de... não me lembro se era madeira... devia ser... Sei que, numa das pontas, tinha algo que parecia uma bolacha gorda, redonda, pesada. Muito pesada.
Bem, mas vamos, de fato, à tabuada. Eu gostava de pensar nos números. O problema era lembrar de tudo, em poucos segundos, com aquela bolacha ali, ansiando pela palma da minha mão. Em casa, minha mãe tomava-nos a tabuada todos os dias:
— Sete vezes uma?
— Sete.
— Sete vezes duas?
— Sete vezes duas...
— Sete vezes duas, menina?
— Catorze. Sete vezes duas, catorze.
E assim ia.
Era uma segunda-feira e, no domingo, mamãe preparara parte da merenda de que eu mais gostava. Minha merendeira agora tinha um lindo astronauta na frente (astronauta andava em alta, sempre andou) e a tampa da garrafa era mais comprida e não possuía alça como a outra. Ah, sim, estava dizendo da merenda: o leite morninho de sempre e um pedaço de bolo. O leite vinha do sítio de Dona Cibele, irmã de minha madrinha. Mulher elegante, fazia gosto apreciar. Pois bem, naquele dia do meu terceiro ano de escola, levei leite e bolo na merendeira. Não qualquer bolo. O bolo de ovos de Dona Lucy. Modéstia bem à parte, minha mãe fazia o bolo de ovos mais delicioso das redondezas. Depois da tabuada, seria a hora da merenda. Eu já estava na casa dos sete. Nunca voltara de casa. Chegou minha vez:
— Sete vezes uma?
— Sete.
— Sete vezes duas?
— Catorze.
— Sete vezes três?
— Vinte e um.
— Sete vezes quatro?
— Vinte e oito.
— Sete vezes cinco?
— Trinta e cinco.
— Sete vezes seis?
— Sete vezes seis...?
— Sete vezes seis! Responda, menina!
Você sabe de onde veio a minha voz naquele momento? Não veio... Eu não podia acreditar que não sabia dizer quanto era sete vezes seis. Depois, não acreditaria que minha professora, com uma raiva autorizada pelos tempos de então, deu-me uns beliscões dizendo que era para que eu deixasse de ser burra e aprendesse, definitivamente, que sete vezes seis é igual a quarenta e dois. "Ouviu? Quarenta e dois. Repita: quarenta e dois". Sem voz, repetir não poderia; chorar talvez. E depois tentar engolir o choro com o leite do sítio e o bolo de minha mãe, que acabaram rejeitando aquela tarefa. Juntos, leite e bolo devolveram o choro sob forma de uma pasta amarela, fedida e gosmenta que cobriu minhas pernas, inundou minhas meias brancas e tingiu meu Vulcabrás quase novo, engraxado naquela manhã.
Nunca mais quis juntar bolo com leite.
Leia Pedagogia não.