sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Aracaju - da colina a tantas esquinas
Acorde, bela dama!
Desça da santa colina
Desça da santa colina
E venha
Nestes versos
De carona
Comemorar sua história
Visitar suas lembranças
Vasculhar sua memória
Vamos tomar mingau no Mercado
Comer siri com beiju
E esperar, ali mesmo
Sentindo a brisa
Do outro lado
Peixe fresco e mariscado
Do barco de Seu Lisboa
Acorde, que a vida é boa
Quando se pode ficar
Na Ponte do Imperador
Para de lá vislumbrar
A certeza do encontro
Entre o rio e o mar
Venha cozinhar caranguejo
E preparar o almoço de logo mais
Sarapatel, feijoada
Pirão de peixe e buchada
Moqueca de arraia
E mais pirão
De guaiamum, de capão
Carne de sol com pirão de leite
E uma ostra com azeite
Pro estômago mais delicado
Da senhora e do senhor
Pra rebater ainda vai
Uma tacinha de licor
De jenipapo ou pitanga
E se for tempo da fruta
Vai bem um suco de manga
Não esqueça a sobremesa
Jaca, banana, goiaba
Tudo feito doce em calda
Valei-me, não deixe faltar
O picolé da Cinelândia
Quero um de coco, branquinho
Com sabor de minha infância
Ande, que o Sol já se põe
Bonito, lá na Atalaia
Traga Henrique e o violão
Aquele do velho Teles
Feito de corda e canção
Diga que chame Joésia
Porque cantoria boa
Precisa ter mesmo a força
De sua alma leoa
Venha com Joaquim Antônio
E peça que não se esqueça
De sua Viola de Fita
Pro povo ficar mais alegre
Pra festa ficar mais bonita
Junte Sena, Irmão e Tom
Com os meninos de Amaral
Queiroga, Antônio Rogério
Paulo Lobo e Sergival
Pra terminar, vamos lá
Na barqueata de Osmário
Buscar depressa Clemilda
Pra fazer forró no asfalto
Com Josa, Edgard e Erivaldo
Agora a noite vai alta
No tabuleiro pintado
Por Jota, Fernandes e Leonardo
Em cima dos areais
Dos brejos
Dos manguezais
Ah! Aracaju!
De um jeito ou de outro jeito
Não se arreda o pé daqui
Seu povo ainda resiste e cumpre
Religiosamente
A determinação de seu cacique
Alma soberana
domingo, 26 de dezembro de 2010
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Gota d'água
História publicada no Jornal Cinform |
Mali tinha sete anos e morava no alto de uma ladeira de pedras, de onde podia ver sua cidade inteirinha. À noite parece que daquele lugar era possível enxergar todas as luzes do mundo – as do céu e as de baixo. Mali via todas com o queixo apoiado sobre as mãos cruzadas no parapeito da janela de seu quarto.
A menina não podia ficar debruçada em seu privilegiado mirante por muito tempo. Logo nos primeiros claros do dia, tinha a tarefa de costume.
O galo cantou em algum lugar do morro, e Mali saiu de casa com uma blusa comprida de mangas três quartos, uma calça de linha, um par de tênis com meia, meio pão na mão direita e uma corda na esquerda. A outra ponta da corda amarrava um tonel vazio que ela deixava rolar ladeira abaixo, dando mais ou menos corda conforme as novidades do caminho. Enquanto descia ela chutava pedrinhas e cantarolava trechos de uma cantiga de roda. Depois da segunda curva da descida um bocado íngreme, Mali encontrou os meninos de sempre. Eles ameaçavam tomar-lhe o pão, mas desistiam diante da cara enfezada que a pequena exibia e da fama de ter tirado sangue da testa de um garoto mais velho. Na verdade, o sangue aconteceu, mas foi por puro acidente. O importante é que a fama da menina pegou. Já na última curva, apareceu Valente. Não se trata aqui de outro menino com mania de briga. Este tinha um pelo bem ralo, nariz comprido, rabo curto do tipo toquinho mesmo. Era um vira-lata que vez ou outra ficava solto na rua e por quem ninguém daria nada se não fosse a coleção de suvenires que ele tinha feito de tanto alcançar desavisados que passavam à sua porta. Valente desafiou a coragem de Mali, Mali confirmou a ousadia de quase sempre. A menina fez de conta que o bicho não existia e, altiva, desfilou pela porta da fera, que acompanhou o seu passar, admirado como um súdito ao ver sua rainha pela primeira vez.
Mali chegou à torneira do Beco 5, uns trezentos metros depois do pé da ladeira. A fila estava pequena ainda, com somente doze à sua frente. O dia já estava realmente claro quando chegou sua vez. Ela não encheu o tonel porque não podia. A fila que se formara desde que ela chegou ao beco não permitiria isso, e ela mesma não conseguiria puxar corda e tonel cheio ladeira acima, curva após curva.
Agora ela voltava e já sentia o peso da carga antes mesmo do início da subida. Torcia para que Valente já tivesse sumido do seu caminho, mas sua torcida foi vã. Ele não só estava como rosnou ao vê-la puxando aquela coisa e olhando de banda. Hora de planejar uma estratégia. Sim! Passar esticando a corda até se distanciar da pequena fera e depois, aí sim, puxar o tonel. “Tolice!” Resolveu enfrentar logo a situação do modo mais comum. Valente acompanhou a cena e se comportou como um bom totó. Ufa!
Agora a heroína faltava apenas vencer as pedras e as curvas da ladeira, desta vez numa subida e com um peso digno dos músculos do pai que não tinha. Ela chegou ofegante ao portão de madeira. Ofegante, suada e vitoriosa. Deu mais uns puxões na corda, pondo o tonel para dentro. No último puxão... opa! quase ergueu o peso, que voltou ao chão encontrando uma pedra que fez saltar a tampa do vaso. Posicionado num declive, o tonel deixou fluir a água numa velocidade maior que a condição que Mali possuía de sair do estado de perplexidade, para tentar evitar o pior. A água se foi. Até a última gota. A menina foi também. Ladeira abaixo, outra vez, de curva em curva, até o Beco 5.
Texto de Aglacy Mary
O galo cantou em algum lugar do morro, e Mali saiu de casa com uma blusa comprida de mangas três quartos, uma calça de linha, um par de tênis com meia, meio pão na mão direita e uma corda na esquerda. A outra ponta da corda amarrava um tonel vazio que ela deixava rolar ladeira abaixo, dando mais ou menos corda conforme as novidades do caminho. Enquanto descia ela chutava pedrinhas e cantarolava trechos de uma cantiga de roda. Depois da segunda curva da descida um bocado íngreme, Mali encontrou os meninos de sempre. Eles ameaçavam tomar-lhe o pão, mas desistiam diante da cara enfezada que a pequena exibia e da fama de ter tirado sangue da testa de um garoto mais velho. Na verdade, o sangue aconteceu, mas foi por puro acidente. O importante é que a fama da menina pegou. Já na última curva, apareceu Valente. Não se trata aqui de outro menino com mania de briga. Este tinha um pelo bem ralo, nariz comprido, rabo curto do tipo toquinho mesmo. Era um vira-lata que vez ou outra ficava solto na rua e por quem ninguém daria nada se não fosse a coleção de suvenires que ele tinha feito de tanto alcançar desavisados que passavam à sua porta. Valente desafiou a coragem de Mali, Mali confirmou a ousadia de quase sempre. A menina fez de conta que o bicho não existia e, altiva, desfilou pela porta da fera, que acompanhou o seu passar, admirado como um súdito ao ver sua rainha pela primeira vez.
Mali chegou à torneira do Beco 5, uns trezentos metros depois do pé da ladeira. A fila estava pequena ainda, com somente doze à sua frente. O dia já estava realmente claro quando chegou sua vez. Ela não encheu o tonel porque não podia. A fila que se formara desde que ela chegou ao beco não permitiria isso, e ela mesma não conseguiria puxar corda e tonel cheio ladeira acima, curva após curva.
Agora ela voltava e já sentia o peso da carga antes mesmo do início da subida. Torcia para que Valente já tivesse sumido do seu caminho, mas sua torcida foi vã. Ele não só estava como rosnou ao vê-la puxando aquela coisa e olhando de banda. Hora de planejar uma estratégia. Sim! Passar esticando a corda até se distanciar da pequena fera e depois, aí sim, puxar o tonel. “Tolice!” Resolveu enfrentar logo a situação do modo mais comum. Valente acompanhou a cena e se comportou como um bom totó. Ufa!
Agora a heroína faltava apenas vencer as pedras e as curvas da ladeira, desta vez numa subida e com um peso digno dos músculos do pai que não tinha. Ela chegou ofegante ao portão de madeira. Ofegante, suada e vitoriosa. Deu mais uns puxões na corda, pondo o tonel para dentro. No último puxão... opa! quase ergueu o peso, que voltou ao chão encontrando uma pedra que fez saltar a tampa do vaso. Posicionado num declive, o tonel deixou fluir a água numa velocidade maior que a condição que Mali possuía de sair do estado de perplexidade, para tentar evitar o pior. A água se foi. Até a última gota. A menina foi também. Ladeira abaixo, outra vez, de curva em curva, até o Beco 5.
Texto de Aglacy Mary
E que tal O sapo?
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Um dia n'A Casa do Zé
Sábado, 11 de dezembro de 2010. Cheguei à TV Aperipê por volta das 11h30. O pessoal estava lá desde as 9 horas. Na verdade, às 9 da noite anterior já havia trabalho para a montagem... Sendo mais fiel à verdade, na sexta-feira João Ricardo já se comportava como produtor do esquema para a montagem da estrutura que serviria à gravação de um show do grupo musical A Casa do Zé. O dia prometia acabar à noite.
As Marias Anitas já haviam tomado seus lugares no cenário de chita, os espaços dos músicos estavam definidos, equipes da TV arrumavam luz e som e câmeras e ombros e trilhos. João Ricardo acompanhava tudo de perto, com aquela expressão de calma que às vezes esconde uma tempestade. Milton fazia considerações filosóficas sobre todo o movimento. Ítalo buscava um acordo com seu intestino; Kátia, Emerson, Papi, Brisa, Almeida Júnior e Ígor estavam papeando, uns na recepção, outros não sei onde. Assim que cheguei, vi Papi, Kátia e Brisa, que me receberam com o calor típico d’A Casa. Soube depois que Almeida Júnior já havia aprontado uma das suas, montando nos bastidores um irreverente programa de entrevistas com os parceiros. Não conto que tudo está gravado no celular de Emerson Olivier, porque não gosto de fofoca e porque isso poderia trazer-lhe problemas.
LUZ! CÂMERA! PAUSA
Quando os estômagos já ameaçavam pensar em almoço, mas se contentando com um pacote de chocolate abiscoitado que João Ricardo não queria compartilhar com ninguém, Damien Chemin, o diretor com mais de dois olhos, chamou todos os músicos a seus postos para ajustar luzes e câmeras. Luiz Oliva conferiu as vozes cantantes e as dos instrumentos. Instantes ricos: além de músicas do repertório ensaiado, a turma d’A Casa encheu o ambiente de samba e outros ritmos. Show antes do show. Estava tudo quase pronto. Faltavam o traveling e um pouco de comida. Agora eram 13h15. Parada para almoço tendo 14h30 como hora marcada para a volta. Ítalo foi a sua casa fazer apenas um mimo ao estômago, Kátia e Papi ficaram na TV e se limitaram a um lanchinho. Talvez Milton e Almeida tenham comido mais que JR, mas não provocaram o escândalo que provocou o prato de João. Aliás, aquilo mais parecia o Pico do Fogo, em Cabo Verde, pronto para erupção. No caminho de volta, reparti igualitariamente a sobremesa entre os moços, salvos assim do monopólio chocolárquico do chefe d’A Casa.
DEPOIS DO ALMOÇO - LUZ! CÂMERA! CANÇÃO
Chegando 10 ou 15 minutos depois do combinado, o exigente João Ricardo não se permitiu reclamar dos outros. Esperamos Ítalo com as roupas de quase todos e... Brisaaaa! Em que país teria ido almoçar a moça do pandeiro? Milton buscava suavizar ainda mais a voz para responder a João, pela sétima vez, que Brisa estava chegando. O fato é que nós mulheres sabemos, e os homens também: do almoço, sim, mas mulher não chega nunca do cabeleireiro. E era no cabeleireiro que a Brisa soprava (não resisti à brincadeira). O fato é que ela chegou e de cabelo pronto (sim, porque às vezes o penteado desagrada, e moças temperamentais se despenteiam assim que encontram o primeiro espelho). Brisa estava ali, todos se vestiram, foram depois maquiados por Kátia e se puseram em cena. Todos? Brisaaaa! Calma. Ela apenas esqueceu o pandeiro. Em casa ou no cabeleireiro? Não importa; ela já volta. Mais trilhos e traveling também estavam chegando; havia tempo. Kátia volta ao camarim para trocar os brincos; ajeito uma alça aqui, um cinto ali... Ítalo estatuou-se a princípio, depois passou o olho várias vezes na cola — João Ricardo, como sempre, arrumou-lhe falas além das músicas —, confirmou com Kátia alguns movimentos e se alimentou do carinho contido numa pedrinha que ganhara num dos shows de lançamento do primeiro CD. Àquela altura seu sorriso estava fácil, o corpo já se entregando à música de dentro.
Hahaha! Preciso dizer: quando vi, na tela de um monitor, o cenário prontinho e os músicos com os seus instrumentos, exclamei quase acreditando: A Casa do Zé está no programa do Rolando Boldrin! Emerson se arrepiou por ter pensado o mesmo. PoiZé...
Hahaha! Preciso dizer: quando vi, na tela de um monitor, o cenário prontinho e os músicos com os seus instrumentos, exclamei quase acreditando: A Casa do Zé está no programa do Rolando Boldrin! Emerson se arrepiou por ter pensado o mesmo. PoiZé...
BLOCO 1
Lá pelas 16 horas, claquete! Antes disso, Wender entrou em cena, com uma ação maldosa, que se repetiria centas vezes até o final do trabalho: desligar o ar-condicionado. Silêncio! Agora era para valer, e A Casa foi de trem com Villa-Lobos, mas somente depois do café com pão preparado por Manuel Bandeira. A partir daí a turma bateu um bolão. Bola de meia, bola de gude... A brincadeira foi interrompida por uma descoberta perigosa anunciada por Ítalo: "A Casa do Zé descobriu quem pintou a onça!"
Todo o primeiro bloco gravado? Gravado. Vamos para o segundo bloco? Não. Vamos fazer tudo de novo, agora com o intuito de focar cenas importantes para a edição. Não sem antes conferir testas, bochechas, narizes e carecas, enxugar-lhes o suor e cobrir, com uma camada de pó, o brilho que as câmeras denunciam.
BLOCO 2
Almeida Júnior passa a sacola em busca de moeda de um real. Coisa de percussionista que vai acompanhar a história da Dona Carochinha, aquela que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Depois da feijoada em que caiu Dom Ratão, era hora de descobrir que de abóbora faz melão e coisa e tal, pra depois voar nas asas da borboleta de Natal e pousar bem diante dos olhos pretos de Maria Anita.
Tudo gravado, agora já sabíamos: tudo de novo para fazer tomadas específicas.
Antes do bloco seguinte, água para uns (incrivelmente nunca para o vocalista, zeloso com sua bexiga), lenço de papel e pó facial para outros.
BLOCO 3
Cantaram aquela música pra nenê nanar, mas que é mesmo pra eu chorar, e seguimos o peixinho do mar. Nem tudo pode ser perfeito, apesar de bacana. Corta! Uma inusitada emoção almeidística impediu a entrada do poema de José Paulo Paes. Agora sim, “minha cama é um veleiro...”
(Com corte ou não, fez-se pausa na gravação em outros momentos, num ou noutro bloco, quando o baixo de Olivier foi do contra e quando os cilindros de metal de Almeida Júnior se esqueceram de abrir certa música.)
E tudo de novo para garantir imagens especiais de cada música deste bloco.
BLOCO 4
Cansaço? Sim, mas a dança do sapo contagia todo mundo. Depois, eita nós! A maré tava mesmo pra peixe (adorei ver uns rapazes no estúdio cantarolando e batucando, acompanhando nossa composição), e Damien ainda provocou o grupo pra não deixar o ânimo cair porque a última música era chegada e anunciava a hora: de uma noite de festa. “Deus lhe dê boa noite, dona!”
Antes do fim, hora de repetir as três últimas músicas para a coleção de imagens de que o diretor precisa para a edição. O baixo e o pandeiro também precisam gravar mais uns movimentos.
Agora sim, todos dispensados.
PARA (A) CASA
Passando lenço e pó nos rostos, servindo água, ajeitando roupa, buscando compensar a falta de uma plateia ali no estúdio e nos divertindo muito, assim ficamos Milton e eu até as 20h30, eu creio, quando se encerrou a gravação e teve início o desmonte da cena. Ainda havia um bocadinho de trabalho para os rapazes de ombros largos.
Como será esse dia na tela? Ali, ao vivo, com direito a sentir o suor do artista e acompanhar o movimento dos criativos e empenhados técnicos, achei tudo de uma boniteza só. O show que vi no teatro foi coisa pra criança exigente e adulto sensível. E na tela? Quem assistir ao especial com a A Casa do Zé na TV Aperipê conta pra mim como é que ficou, faz favor.
Texto de Aglacy Mary
Texto de Aglacy Mary
Você também pode ler O sapo.
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
Um dia sem almoço
Ela preparava a comida, arrumava a mesa, tomava um banho, servia o marido e os filhos. Depois, como quem apreciava um Picasso restaurado pelas próprias mãos, admirava a cena. Corrigia os gestos do mais novo, controlava o tempo do mais velho, estimulava os gêmeos, aguardava o tempo de todos e um elogio do companheiro. Satisfeita por satisfazer sua cria e o homem com quem estava casada há tantos anos, levava os pratos sujos à pia e voltava à mesa, onde sentava e se servia. Que ninguém a incomodasse. A hora agora era santa. Gostava de comer o que cozinhava e de ruminar pensamentos que só lhe ocorriam ali, na paz da metade das tarefas cumprida. Depois disso seguia para a outra metade do dia, que terminava com algum prazer antes de dormir.
Essa vida ganhou curso longo, e a mulher nunca mais se imaginou sem as repetitivas atribulações da casa enorme; sem as necessidades e os desejos dos quatro filhos; sem as cobranças do marido reconhecidamente exigente. Aconteceu, todavia, de os filhos ganharem corpo e vida próprios e de o esposo morrer antes do combinado feito nos melhores tempos daquele romance.
Os procedimentos decorrentes da morte dele ela administrou com a mesma calma com que tratava toda questão doméstica, da escolha das marcas dos produtos de limpeza à seleção dos pedreiros em tempos de reforma. Saiu do cemitério pouco concorrido, deixou os filhos no aeroporto e voltou à casa, agora maior, silenciosa e sem demandas que não fossem de tapetes por lavar, cristais por dar brilho, livros para reler, filmes para ver. Os dias seguintes precisaram ser inventados. Alguns lugares à mesa e saudoso cardápio: carne de panela, moqueca de cação, frango com quiabo e dois tipos de salada. Doce de leite em bolotas, doce de banana em rodelas e outro batido, para agradar as crianças. Às vezes vinho, às vezes café. Servia-se e imaginava satisfeitos os fictícios convidados. Eles talvez; ela, porém, queria mais.
Jogou fora os comprimidos, esvaziou as caixas de fotos e se encheu de lembranças. Encontrou ali o único baile e uns finais de semana na praia. Flagrou o solitário bilhete de cinema e os papéis que resistiram: mãe, esposa, dona de casa.
Para surpresa de quem desconhecia parte do roteiro de sua vida, foi ao teatro. Há quanto tempo não pisava naquele lugar? Na verdade desde que... Preferia não confessar a si mesma a renúncia que um dia fizera. Dedicação, sonho, grandes possibilidades, tudo deixado no meio de um caminho. Ela foi mesmo ao teatro. Repetiu a dose no final de semana seguinte e nos cinco próximos, tornando-se plateia cativa do mesmo espetáculo, cuja história já conhecia de suas permitidas leituras de cabeceira.
Quando o tempo, que era também de compras de verduras e peixes no mercado, seguia para a 8ª. semana do musical, aconteceu o fato largamente noticiado pela imprensa: “Atriz Lena Villani, protagonista de ‘Um dia sem almoço’, em cartaz no Teatro Luiz Carlos Reis, sofre uma isquemia cerebral”. Desligou o rádio, estacionou o carro, deu um telefonema, tomou outra direção acelerando como se tivesse tudo a ver com aquela trágica realidade. Já no teatro dirigiu-se aos camarins, com jeito parecido com o de quem sempre teve o acesso liberado. Encontrou o diretor da peça e lhe disse tudo.
No final daquela semana, uma poltrona ficou vazia na plateia, e a espectadora assídua nunca mais deixou o palco.
Autora: Aglacy Mary
Esta é mais uma publicada no Caderno de Cultura do Jornal Cinform - 06 a 12 de dezembro de 2010, Ano 28, Edicão 1443
Experimente também "E o pau comeu"
Experimente também "E o pau comeu"
sábado, 20 de novembro de 2010
Novembro
A imagem é do talentoso Maurício Negro. Uso-a outra vez, com a permissão que ele me deu em 2008 |
Se pensa meu direito
humanitariamente,
engana-se.
Deixar-me Ser
está bem longe de ser
um espaço de piedade.
Nele não me quero perder.
Novembro-me
em Palmares.
Ergo um castro,
como o líder e o poeta,
e olho daqui, destes ares
de minha palavra marrom.
Invento cores e pares,
junto liras e tambores.
Há nova flor em meu som.
20 de NOVEMBRO
DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA
DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Amores na ponta da língua
Mas não tem nada não... |
Vivia descobrindo erros de português. Era seu trabalho e sua mania. Escrita errada lhe provocava uma gastura que só passava depois da correção. Certa vez acabou fazendo um grande estabelecimento comercial da cidade enfrentar um prejuízo daqueles. É que ela encontrou uma xistice, erro gravíssimo, logo onde? Bem no meio do nome da loja, que estava para ser inaugurada. Como o proprietário da casa comercial, um senhor muito sério e conservador, não escreveu o nome daquele jeito por charme, achou melhor consertar tudo onde já estava posto o erro, inclusive o letreiro da fachada e o projeto de bolo da festa.
De outra vez, houve o caso com o rapaz do violão. Era daqueles de parar o trânsito. Não exatamente pelos belos dotes físicos que a natureza felizmente lhe deu, mas por arroubos românticos que lhe tomavam a ideia em plena travessia da Itaporanga com a Gonçalo, às 18h30 de uma sexta-feira. Ele ajoelhado, no meio do asfalto, declarando à moça das letras certas uma paixão arrebatadora; uns passantes morrendo de inveja; outros morrendo de rir; ela morrendo de vergonha; os motoristas provavelmente morrendo de raiva. Se bem que o buzinaço talvez tivesse como motivo apenas a emoção diante daquela rara cena urbana.
A notícia ruim é que o rapaz, que parecia viver constantemente em estado de graça, morava em outro estado da federação e deixaria a cidade em breve. Ela já suspirava por ele o suficiente para adoecer de saudade, e as cartas foram o santo remédio acertado pelos dois. Ele não tivera tempo de conhecer a gastura da moça. Ela conheceria agora seu jeito “livre” de escrever. As cartas dele vinham com a dose certa de cortejo, que se juntava à distância para garantir a sobrevivência da paixão. Eram linhas ilustradas com desenhos não ensaiados, feitos em esferográfica preta. O moço de fato era de muitas artes. Quem, além dele, comia uma maçã inteira, incluindo o talo e as sementes? Ela achava aquilo uma graça.
Lá pela sétima carta, começando a derrapar sobre a passarela das conjunções e cometendo o pecado da gula diante do cardápio dos acentos gráficos, o violonista desafinou. Segundo o ouvido letrado da gasturenta namorada. Aquela missiva ainda teve resposta, embora em dó menor, e o romance, tropeçando na língua, a portuguesa, rolou oitava abaixo.
Ele casou com uma médica, antiga namorada, de quem não conseguia traduzir uma letra de bilhete sequer, dada a pouca legibilidade de sua grafia. Se de cartas dependesse aquele relacionamento, dependeria também da farmácia da esquina da casa dele. Não era o caso. Os dois evoluíam bem, harmonizavam-se quanto à língua, a universal.
A moça de letras bem cuidadas sentiu saudade e, anos depois, até procurou notícia... Sem sucesso. Conheceu um juiz, casou e nunca mais foi surpreendida com um porquê mal redigido. Com o tempo, porém, acabou descobrindo no marido a total falta de condição de pontuar corretamente orações adjetivas. O desconforto que isso lhe provocou era nada, contudo, perto do que no início lhe pareceu simplesmente impressionante: o vetusto português que ele exibia nas pretorias onde atuava. A falta de graça e de inteligibilidade na escrita do magistrado foram fatais.
Às vezes a professora suspira de novo. Volta à Itaporanga com a Gonçalo e pensa em como poderia ter a língua mais solta. Imagina também quantas outras destinatárias tiveram as cartas do moço do violão. Quantas teriam sido mais sensíveis que ela, mais inteligentes, mais felizes.
Você pode gostar de Falsa verdade.
sábado, 13 de novembro de 2010
De.cisão
E não me venha com amanhã-eu-volto.
Não quero mais
sua herança de alguidar,
seu sorriso desamparado
e esta vigília faminta.
Não quero mais
sua herança de alguidar,
seu sorriso desamparado
e esta vigília faminta.
Estou certa, minha visão é nítida.
Não quero mais
a ludicidade de suas mãos,
seu pousar sorrateiro
no muro de minhas certezas.
Não quero.
Seus desejos de meu sono manso,
a falta da luz de seus olhos
nas noites nervosas de meus três dias tortos.
Seus desejos de meu sono manso,
a falta da luz de seus olhos
nas noites nervosas de meus três dias tortos.
Não tenho dúvida.
Não quero.
Não quero.
E não me venha com pretexto
de casaco morno esquecido na varanda fria
ou imprescindível travesseiro de penas
de não sei que ave.
de casaco morno esquecido na varanda fria
ou imprescindível travesseiro de penas
de não sei que ave.
Não quero mais que me queira
assim.
Então rompa a trava da porta.
Não quero.
Não volte.
Ou fique até depois de amanhã.
assim.
Então rompa a trava da porta.
Não quero.
Não volte.
Ou fique até depois de amanhã.
Outra ideia é ler Nordestinidade - pra não dizer que não falei.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Falsa Verdade
Foto: Eclisse |
— Boa tarde. Posso ajudar? O senhor está procurando...?
— A sala do Dr. Gerard, por favor. Falei com alguém pelo telefone. Disse-me que atendia aqui. Preciso dele com urgência. Como encontro o doutor, pode me dizer?
— Encontrou. Sou eu mesmo, a seu dispor. Acompanhe-me. Vamos entrando.
No consultório, devidamente acomodado num estofado que convidava mais para uma sesta que para um papo-cabeça, o pobre homem começa a despejar fatos conturbados de sua malograda existência, típica hiena daquele desenho da tv ainda em preto e branco (“Oh, céus! Oh, vida! Oh,dia! Oh, azar!”):
— Doutor, meus dias são intermináveis. Não paro um só segundo, nem quando durmo. O senhor precisa me ajudar com isso. Acordo às 5h30, mas até chegar aí, já sonhei com o dia quase inteiro. Sonho que cortei a grama, lavei o carro, dei banho nos cinco cachorros e servi a ração das feras numa mistura de carne cozida com arroz. E o pior vem agora, quando me acordo, já cansado. Aí, sim, começo pra valer, da grama até os cachorros. E ainda tem Gabi e Ciça. Tenho que levar as meninas pra escola, é claro, mas não antes de passar o uniforme de cada uma, vestir as duas direitinho, pentear todos aqueles cachos compridos, conferir a lição da que dormiu mais cedo e servir a vitamina de abacate. De Ciça. Porque Gabi gosta de uma gororoba de banana, cereal, leite, mel e pó de casca de ovo. A essa altura, já deu pra ver que são 6h30, já sei que vou chegar atrasado no escritório e já tô na agonia. Lá o dia vai começar. De novo.
— E isso aí, o que é?
— O quê? Ah, essa tremedeira na minha perna é coisa que não me larga, doutor. É normal quando fico ansioso. Acontece sempre.
— E...
— Esta piscadela interminável? Só acontece quando a perna treme.
— Vejo que seu rosto...
— Estes espasmos na bochecha direita? Toda vez que fico piscando direto assim, dispara essa tremedeira louca. Uma hora é dum lado, outra hora é do outro. Ai, doutor, que meu coração acelera só de pensar nesse sufoco. E veja que ainda nem contei a parte pior, que é quando eu me encontro com meu chefe ranzinza. Aí sim, a casa cai. Quantos remédios tarja preta o senhor vai receitar pra resolver meu martírio? É caso pra internamento, não é?
— Calma. Relaxe, homem. Respire. Sabe como se come um elefante, não é? Por partes. Então, pra começar conte-me tudo o que sabe de sua própria concepção. Sua mãe teve problemas na gestação? Como foi o parto? É filho natural? Foi adotado? Fale-me de sua infância. Fale tudo. Estou aqui para ouvi-lo e ajudá-lo.
Os dois homens são interrompidos pela porta, que se abre sem anúncio. Surge uma mulher baixa, de jaleco verde e olhar decidido, visivelmente aborrecida, palavreando de modo inflamado parecendo mãe quando o filho já aprontou todas:
— Outra vez, Seu Geraldo? Seu caso está ficando complicado. Ninguém por aqui suporta mais essas suas tramas. O estacionamento está lá, abandonado, ninguém sai, ninguém entra.
— Mas...
— Nem mas nem meio mas. Definitivamente, afaste-se dos pacientes. Volte ao seu posto de trabalho! Chega de engodo! Está na hora de procurar tratamento, ou já sabe, não é?
Seu Geraldo sai cabisbaixo, chutando latas invisíveis, resmungando qualquer “mas eu merecia uma chance”.
O infeliz que buscava ajuda, ainda jogado no divã e pouco entendendo da discussão entre a mulher de jaleco e o “doutor”, balbucia qualquer coisa e desanda numa incomodativa performance de tiques digna da interpretação de Jim Carrey em “O Mentiroso”.
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Nordestinidade - pra não dizer que não falei
Foto: Alex Uchoa (www.pbase.com/alexuchoa) |
Vejo em mim um SerTão múltiplo e singular
que só poderia ser nordestino
como grandes Chicos:
o rio em sua foz,
o Science e sua voz,
o Dantas, de rico trato verbal,
a Praça, patrimônio
do povo, mundial.
do povo, mundial.
Mais poesia: Endermecida.
Da saparia
Que a tarde nos dê novo olhar Foto: Aglacy Mary |
Manhãs diafragmáticas
me perguntam,
marioquintanamente,
se engolir sapo seria mais fácil
se ele lavasse o pé.
me perguntam,
marioquintanamente,
se engolir sapo seria mais fácil
se ele lavasse o pé.
domingo, 31 de outubro de 2010
Caixa amarela
Tenho umas modas diferentes. A de hoje é preparar uma caixa de presentes cheia de tudo o que a moça do dia puder imaginar. A caixa tem que ser amarela. Como o carneirinho dela, como o seu primeiro poste, como a música preferida, como o chapéu que o Lobo Mau não viu, como a última noite, como o segundo romance, como a uva do outro vinho, como a vinheta de duas manhãs.
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