Mas não tem nada não... |
Vivia descobrindo erros de português. Era seu trabalho e sua mania. Escrita errada lhe provocava uma gastura que só passava depois da correção. Certa vez acabou fazendo um grande estabelecimento comercial da cidade enfrentar um prejuízo daqueles. É que ela encontrou uma xistice, erro gravíssimo, logo onde? Bem no meio do nome da loja, que estava para ser inaugurada. Como o proprietário da casa comercial, um senhor muito sério e conservador, não escreveu o nome daquele jeito por charme, achou melhor consertar tudo onde já estava posto o erro, inclusive o letreiro da fachada e o projeto de bolo da festa.
De outra vez, houve o caso com o rapaz do violão. Era daqueles de parar o trânsito. Não exatamente pelos belos dotes físicos que a natureza felizmente lhe deu, mas por arroubos românticos que lhe tomavam a ideia em plena travessia da Itaporanga com a Gonçalo, às 18h30 de uma sexta-feira. Ele ajoelhado, no meio do asfalto, declarando à moça das letras certas uma paixão arrebatadora; uns passantes morrendo de inveja; outros morrendo de rir; ela morrendo de vergonha; os motoristas provavelmente morrendo de raiva. Se bem que o buzinaço talvez tivesse como motivo apenas a emoção diante daquela rara cena urbana.
A notícia ruim é que o rapaz, que parecia viver constantemente em estado de graça, morava em outro estado da federação e deixaria a cidade em breve. Ela já suspirava por ele o suficiente para adoecer de saudade, e as cartas foram o santo remédio acertado pelos dois. Ele não tivera tempo de conhecer a gastura da moça. Ela conheceria agora seu jeito “livre” de escrever. As cartas dele vinham com a dose certa de cortejo, que se juntava à distância para garantir a sobrevivência da paixão. Eram linhas ilustradas com desenhos não ensaiados, feitos em esferográfica preta. O moço de fato era de muitas artes. Quem, além dele, comia uma maçã inteira, incluindo o talo e as sementes? Ela achava aquilo uma graça.
Lá pela sétima carta, começando a derrapar sobre a passarela das conjunções e cometendo o pecado da gula diante do cardápio dos acentos gráficos, o violonista desafinou. Segundo o ouvido letrado da gasturenta namorada. Aquela missiva ainda teve resposta, embora em dó menor, e o romance, tropeçando na língua, a portuguesa, rolou oitava abaixo.
Ele casou com uma médica, antiga namorada, de quem não conseguia traduzir uma letra de bilhete sequer, dada a pouca legibilidade de sua grafia. Se de cartas dependesse aquele relacionamento, dependeria também da farmácia da esquina da casa dele. Não era o caso. Os dois evoluíam bem, harmonizavam-se quanto à língua, a universal.
A moça de letras bem cuidadas sentiu saudade e, anos depois, até procurou notícia... Sem sucesso. Conheceu um juiz, casou e nunca mais foi surpreendida com um porquê mal redigido. Com o tempo, porém, acabou descobrindo no marido a total falta de condição de pontuar corretamente orações adjetivas. O desconforto que isso lhe provocou era nada, contudo, perto do que no início lhe pareceu simplesmente impressionante: o vetusto português que ele exibia nas pretorias onde atuava. A falta de graça e de inteligibilidade na escrita do magistrado foram fatais.
Às vezes a professora suspira de novo. Volta à Itaporanga com a Gonçalo e pensa em como poderia ter a língua mais solta. Imagina também quantas outras destinatárias tiveram as cartas do moço do violão. Quantas teriam sido mais sensíveis que ela, mais inteligentes, mais felizes.
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Bárbara,
ResponderExcluirCreio que isso é que é pagar a língua.
Pelamordedeus, Aglacy! O que você faz fora dos compêndios de literatura contemporânea? Ou sou eu que ando desatualizado?
ResponderExcluirSe bem que eu ando mesmo...