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sexta-feira, 23 de julho de 2010

A primeira vez - a história

Caderno de Cultura do Jornal Cinform - Aracaju - SE 30/08 a 05 de setembro de 2010 - Ano XXVIII - edição 1429

 
Beirava os 11 anos. Durante aquela visita, o silêncio de palavras dava lugar a um assovio feito do pouco ar que passava pela chupeta na boca do pobre homem. Assim, sabiam que ele ainda estava vivo.
A filha do moribundo estava ali, também, ao pé da cama. As duas trocavam umas palavras de vez em quando. Era uma visita de solidariedade. Soube que o pai da colega estava muito doente e quis dar algum apoio.
Às vezes, o apito soava mais alto; às vezes, mais longo. Elas cochilavam e despertavam com aqueles sopros de vida. E rezavam. As mães e o médico disseram que somente um milagre o livraria daquela situação.
Dona Luzia, olhos amiudados, entrou e ofereceu bolachinhas de milho e umas queijadas. Elas repartiram uma dessas últimas.
— Sua mãe leva você pra escola, amanhã?
— Não sei.
— Pode ser que tenha que ir pro enterro, né?
— É.
— E roupa preta... tem?
— Não. Minha mãe diz que eu fico muito magrinha.
— Vai ter que comprar, né?
— Mas ainda pode acontecer o milagre.
Mentira. Ninguém ali acreditava no tal milagre. O assovio estava mais fraco. As pernas, desnudas, pareciam frias. Estavam frias. Será que ele morrera, e elas não haviam percebido? Não. Ainda se podia ouvir o apito.
— E o Serginho? Vocês se encontraram naquele dia?
Serginho era daqueles troféus que toda menina queria ostentar. Era aluno já do científico e pensava em fazer faculdade. O pai tinha um Opala — quatro portas, bege, capô preto — que ele pegava às sextas-feiras.
— Que encontro que nada! Foi quando minha mãe avisou que tinham levado meu pai pro hospital. Marcamos no banquinho, por trás do cachorro-quente de Seu João. Deve estar, até hoje, pensando que eu esqueci... ou desisti...
— Eu posso levar um bilhete pra ele, se você quiser.
— Tá.
O homem anunciou a existência de tanto ar nos pulmões quanto não haveria mais dali a alguns quilômetros, no cemitério. As duas nem se olharam. A filha pôs a mão sobre o braço dele, a amiga massageou-lhe o pé direito, frio desde muito antes. Disse que era melhor calçar-lhe logo as meias. Nunca vira e, muito menos, tocara num morto, mas sempre ouvira dizer que o corpo vai endurecendo até quando não obedece mais a flexões.
Dona Luzia entrou no quarto, fazendo-se anunciar, desde o início do corredor, por uma série de gritos confusos. Entrou e saiu algumas vezes, perambulando que ficou entre o leito do marido morto e o telefone na sala. Finalmente olhou e viu que a amiga da filha, com habilidade de iniciante, terminava de ajeitar a segunda meia do morto.
— Tirem essas meninas daqui! Quem as deixou assim? Saiam! Isso não é lugar para crianças. Não é assunto pra vocês. Vamos logo, saiam!
— Então amanhã não tem escola, né?
— É.
— Quer que leve o bilhete?
“Meu pai ficou doente. Por isso faltei ao nosso encontro. Agora ele morreu. A gente pode se ver depois de amanhã. No nosso banquinho, tá?”
Ela assinou com uma marca cor-de-rosa deixada pelo toque suave da pele fina de seus lábios, coloridos por um bastão que carregava no bolso interno da saia curta de pregas.
Acompanhou a amiga até a esquina de Seu Nivaldo, onde foi comprar umas balinhas de goma. Para açucarar a boca. E as próximas horas.
Da história nasceu um poema: A primeira vez.

Um comentário:

  1. Minha nossa... A gente vai ter que se encontrar pra você me explicar essa história.

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