Caderno de Cultura do Jornal Cinform - Aracaju - SE 30/08 a 05 de setembro de 2010 - Ano XXVIII - edição 1429 |
Beirava
os 11 anos. Durante aquela visita, o silêncio de palavras dava lugar a um
assovio feito do pouco ar que passava pela chupeta na boca do pobre homem.
Assim, sabiam que ele ainda estava vivo.
A
filha do moribundo estava ali, também, ao pé da cama. As duas trocavam umas
palavras de vez em quando. Era uma visita de solidariedade. Soube que o pai da
colega estava muito doente e quis dar algum apoio.
Às
vezes, o apito soava mais alto; às vezes, mais longo. Elas cochilavam e
despertavam com aqueles sopros de vida. E rezavam. As mães e o médico disseram
que somente um milagre o livraria daquela situação.
Dona
Luzia, olhos amiudados, entrou e ofereceu bolachinhas de milho e umas
queijadas. Elas repartiram uma dessas últimas.
—
Sua mãe leva você pra escola, amanhã?
—
Não sei.
—
Pode ser que tenha que ir pro enterro, né?
—
É.
—
E roupa preta... tem?
—
Não. Minha mãe diz que eu fico muito magrinha.
—
Vai ter que comprar, né?
—
Mas ainda pode acontecer o milagre.
Mentira.
Ninguém ali acreditava no tal milagre. O assovio estava mais fraco. As pernas,
desnudas, pareciam frias. Estavam frias. Será que ele morrera, e elas não
haviam percebido? Não. Ainda se podia ouvir o apito.
—
E o Serginho? Vocês se encontraram naquele dia?
Serginho
era daqueles troféus que toda menina queria ostentar. Era aluno já do
científico e pensava em fazer faculdade. O pai tinha um Opala — quatro portas,
bege, capô preto — que ele pegava às sextas-feiras.
—
Que encontro que nada! Foi quando minha mãe avisou que tinham levado meu pai
pro hospital. Marcamos no banquinho, por trás do cachorro-quente de Seu João.
Deve estar, até hoje, pensando que eu esqueci... ou desisti...
—
Eu posso levar um bilhete pra ele, se você quiser.
—
Tá.
O
homem anunciou a existência de tanto ar nos pulmões quanto não haveria mais
dali a alguns quilômetros, no cemitério. As duas nem se olharam. A filha pôs a
mão sobre o braço dele, a amiga massageou-lhe o pé direito, frio desde muito
antes. Disse que era melhor calçar-lhe logo as meias. Nunca vira e, muito
menos, tocara num morto, mas sempre ouvira dizer que o corpo vai endurecendo
até quando não obedece mais a flexões.
Dona
Luzia entrou no quarto, fazendo-se anunciar, desde o início do corredor, por
uma série de gritos confusos. Entrou e saiu algumas vezes, perambulando que
ficou entre o leito do marido morto e o telefone na sala. Finalmente olhou e
viu que a amiga da filha, com habilidade de iniciante, terminava de ajeitar a
segunda meia do morto.
—
Tirem essas meninas daqui! Quem as deixou assim? Saiam! Isso não é lugar para
crianças. Não é assunto pra vocês. Vamos logo, saiam!
—
Então amanhã não tem escola, né?
—
É.
—
Quer que leve o bilhete?
“Meu
pai ficou doente. Por isso faltei ao nosso encontro. Agora ele morreu. A gente
pode se ver depois de amanhã. No nosso banquinho, tá?”
Ela
assinou com uma marca cor-de-rosa deixada pelo toque suave da pele fina de seus
lábios, coloridos por um bastão que carregava no bolso interno da saia curta de
pregas.
Acompanhou
a amiga até a esquina de Seu Nivaldo, onde foi comprar umas balinhas de goma.
Para açucarar a boca. E as próximas horas.
Da história nasceu um poema: A primeira vez.
Minha nossa... A gente vai ter que se encontrar pra você me explicar essa história.
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