Eu
me soube negra bem cedo, antes do interrogatório a que a adolescência submete o
espelho. Isso me deu chão onde pisar e crescer, mas não sem rachaduras e
ondulações no caminho.
Ao
abrir os olhos na maternidade de Aracaju, vi uma mulher morena clara, nariz
afilado; cabelos tão lisos e finos, que escapavam das presilhas. Era minha mãe.
Vi, também, um homem escuro. Seus cabelos eram bem crespos, daqueles onde se
pode brincar de esconder coisas. O homem era meu pai. Comecei a ver pentes
finos e outros de dentes largos e garfos de pentear. A convivência desses
objetos já favorecia meu entendimento de que diferenças eram caprichos da natureza
para enfeitar a vida. Houve mais, e eu soube mais tarde o quanto tudo era inevitável.
Aconteceram histórias, as que ouvi e as que ainda protagonizo, aos 50 anos de
idade, neste cotidiano de mulher negra e educadora.
De
mamãe, aprendi o amor e um sentido de família que trouxe meu avô de volta das férias
forçadas pela opção política que fizera. Com ele, memórias vivas, como a da
queima de sua biblioteca. As histórias de meu pai começavam nas manhãs de sua
infância, ele com um tabuleiro de cuscuz na cabeça, obediente à minha severa e destemida
avó viúva. O menino ganhou diploma e condição para dar aos filhos boas escolas
e o melhor modelo de disciplina e honestidade.
O
tempo de escola confirmou o prazer de ler, já aprendido na biblioteca de casa,
e a descoberta de que ser negra era sinônimo de luta. Provei o conforto da
construção de afetos, mas também a dor diante de verdades que a infância não
esconde. A primeira foi a recusa de uns meninos, enchendo de nãos a professora
que tentava arranjar-me par para a dança junina. Não entendia aquilo, pois o
espelho ratificava minhas belas pretices, meu pai e a escola afirmavam minha inteligência.
Mas eu já havia sido ferida antes, quando a dona do salão que minha mãe
frequentava indicara o uso de henê para cabelo “ruim”. Aos 13 anos, porém, o
pior: a diretora da escola confiscou minha dissertação com receio de que vencesse
um concurso, e isso tornasse uma aluna negra a representante da instituição no
estado. Felizmente havia uma Iara Vieira no caminho. A professora poetisa
desengavetou o crime, a banca me deu o prêmio, e meu pai me tirou da escola.
O
trabalho que realizo hoje na educação e minha presença no ambiente cultural de
Sergipe apontam para a construção de um pensamento intelectual mais maduro,
aquele que não prejulga e que respeita as diferenças que caracterizam negros,
brancos, coloridos.
Você pode gostar de ler Tuas romãs.
Você pode gostar de ler Tuas romãs.