— Boa tarde. Posso ajudar? O senhor está procurando...?
— A sala do Dr. Gerard, por favor. Falei com alguém pelo telefone. Disse-me que atendia aqui. Preciso dele com urgência. Como encontro o doutor, pode me dizer?
— Encontrou. Sou eu mesmo, a seu dispor. Acompanhe-me. Vamos entrando.
No consultório, devidamente acomodado num estofado que convidava mais para uma sesta que para um papo-cabeça, o pobre homem começa a despejar fatos conturbados de sua malograda existência, típica hiena daquele desenho da tv ainda em preto e branco (“Oh, céus! Oh, vida! Oh,dia! Oh, azar!”):
— Doutor, meus dias são intermináveis. Não paro um só segundo, nem quando durmo. O senhor precisa me ajudar com isso. Acordo às 5h30, mas até chegar aí, já sonhei com o dia quase inteiro. Sonho que cortei a grama, lavei o carro, dei banho nos cinco cachorros e servi a ração das feras numa mistura de carne cozida com arroz. E o pior vem agora, quando me acordo, já cansado. Aí, sim, começo pra valer, da grama até os cachorros. E ainda tem Gabi e Ciça. Tenho que levar as meninas pra escola, é claro, mas não antes de passar o uniforme de cada uma, vestir as duas direitinho, pentear todos aqueles cachos compridos, conferir a lição da que dormiu mais cedo e servir a vitamina de abacate. De Ciça. Porque Gabi gosta de uma gororoba de banana, cereal, leite, mel e pó de casca de ovo. A essa altura, já deu pra ver que são 6h30, já sei que vou chegar atrasado no escritório e já tô na agonia. Lá o dia vai começar. De novo.
— E isso aí, o que é?
— O quê? Ah, essa tremedeira na minha perna é coisa que não me larga, doutor. É normal quando fico ansioso. Acontece sempre.
— E...
— Esta piscadela interminável? Só acontece quando a perna treme.
— Vejo que seu rosto...
— Estes espasmos na bochecha direita? Toda vez que fico piscando direto assim, dispara essa tremedeira louca. Uma hora é dum lado, outra hora é do outro. Ai, doutor, que meu coração acelera só de pensar nesse sufoco. E veja que ainda nem contei a parte pior, que é quando eu me encontro com meu chefe ranzinza. Aí sim, a casa cai. Quantos remédios tarja preta o senhor vai receitar pra resolver meu martírio? É caso pra internamento, não é?
— Calma. Relaxe, homem. Respire. Sabe como se come um elefante, não é? Por partes. Então, pra começar conte-me tudo o que sabe de sua própria concepção. Sua mãe teve problemas na gestação? Como foi o parto? É filho natural? Foi adotado? Fale-me de sua infância. Fale tudo. Estou aqui para ouvi-lo e ajudá-lo.
Os dois homens são interrompidos pela porta, que se abre sem anúncio. Surge uma mulher baixa, de jaleco verde e olhar decidido, visivelmente aborrecida, palavreando de modo inflamado parecendo mãe quando o filho já aprontou todas:
— Outra vez, Seu Geraldo? Seu caso está ficando complicado. Ninguém por aqui suporta mais essas suas tramas. O estacionamento está lá, abandonado, ninguém sai, ninguém entra.
— Mas...
— Nem mas nem meio mas. Definitivamente, afaste-se dos pacientes. Volte ao seu posto de trabalho! Chega de engodo! Está na hora de procurar tratamento, ou já sabe, não é?
Seu Geraldo sai cabisbaixo, chutando latas invisíveis, resmungando qualquer “mas eu merecia uma chance”.
O infeliz que buscava ajuda, ainda jogado no divã e pouco entendendo da discussão entre a mulher de jaleco e o “doutor”, balbucia qualquer coisa e desanda numa incomodativa performance de tiques digna da interpretação de Jim Carrey em “O Mentiroso”.
Publicado no Jornal Cinform - Aracaju - SE, 01 a 07 de novembro de 2010 - Ano XXVIII, edição 1438.