Praia do Saco | Foto: Aglacy Mary |
(Inspirado numa ideia de vazio que aconteceu em Nena, dedicado a ela - poema que abre meu livro A Lavra)
Olhando para aquele lugar vazio,
Pergunto-me se você terá existido algum dia.
Aquele contorno suave e austero,
Aquele ligeiro meneio em que a cabeça ocultava uma
nesga de riso,
Aquele segundo em que as pálpebras se erguiam
E desvelavam silêncios que insistiam em amanhecer,
Aquela nobre e desencorajadora compostura,
Aquele cenho que se franzia no esforço insistente de
ver mais,
O olhar esgazeado de quem, por outras vezes, não
enxergava nada... Tudo.
Tudo talvez
Existisse apenas porque meu olhar se destinava
passadiço,
Feito bordado nascido na ideia,
Sorrateiro como estes traços de tinta, que deixam
escorrer
Pensamentos nervosos, borrados de indecisões,
Perdidos entre o ocaso precoce e o surpreendente
alvorecer.
Recordo que ali havia um ou dois retratos.
Quem os teria banido?
Que fanática aversão teria desaguado em tão infame
abandono?
Cultivo agora esta aura de abatimento e luto
Pela falta da alegria incontida, que, por tantas vezes,
Afastou-me de você.
Meu corpo anunciava a hora: precisava andar aos saltos,
Rodeando-me de espaço para proclamar o meu amor.
Grave e doloroso.
De uma dor querida, indesejosa de anseios de rebelião.
Não se aflija com a exibição rumorosa de meus
sentimentos;
Agora que eles ganham os ares, recupero a sanidade
Nascida da tristeza do depois do amor.
Agora vejo de novo as flores amarelas caídas no pátio
E ouço o roçar das asas cantoras do meio-pássaro.
As árvores existem ainda, com suas primaveras nupciais,
Que constroem emaranhados ninhos nos corações
desavisados.
O amor existe ainda, ainda que eu não o toque,
Ainda que seu perfume não invada meu quarto,
Ainda que sua imagem fuja do enquadramento da minha
janela.
Lacunoso esse amor.
Que ondeia, avoluma-se e se exaure
Para depois brotar de novo, em minh'alma esvaziada.
Agora é pranto de açucena, largo e silencioso,
Sem lugar para vertiginosas expressões e provas
exuberantes.
Não mais.