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sexta-feira, 31 de maio de 2013

Espelho meu. Ou, Eu me soube negra bem cedo

Eu me soube negra bem cedo, antes do interrogatório a que a adolescência submete o espelho. Isso me deu chão onde pisar e crescer, mas não sem rachaduras e ondulações no caminho. 
Ao abrir os olhos na maternidade de Aracaju, vi uma mulher morena clara, nariz afilado; cabelos tão lisos e finos, que escapavam das presilhas. Era minha mãe. Vi, também, um homem escuro. Seus cabelos eram bem crespos, daqueles onde se pode brincar de esconder coisas. O homem era meu pai. Comecei a ver pentes finos e outros de dentes largos e garfos de pentear. A convivência desses objetos já favorecia meu entendimento de que diferenças eram caprichos da natureza para enfeitar a vida. Houve mais, e eu soube mais tarde o quanto tudo era inevitável. Aconteceram histórias, as que ouvi e as que ainda protagonizo, aos 50 anos de idade, neste cotidiano de mulher negra e educadora. 
De mamãe, aprendi o amor e um sentido de família que trouxe meu avô de volta das férias forçadas pela opção política que fizera. Com ele, memórias vivas, como a da queima de sua biblioteca. As histórias de meu pai começavam nas manhãs de sua infância, ele com um tabuleiro de cuscuz na cabeça, obediente à minha severa e destemida avó viúva. O menino ganhou diploma e condição para dar aos filhos boas escolas e o melhor modelo de disciplina e honestidade.
O tempo de escola confirmou o prazer de ler, já aprendido na biblioteca de casa, e a descoberta de que ser negra era sinônimo de luta. Provei o conforto da construção de afetos, mas também a dor diante de verdades que a infância não esconde. A primeira foi a recusa de uns meninos, enchendo de nãos a professora que tentava arranjar-me par para a dança junina. Não entendia aquilo, pois o espelho ratificava minhas belas pretices, meu pai e a escola afirmavam minha inteligência. Mas eu já havia sido ferida antes, quando a dona do salão que minha mãe frequentava indicara o uso de henê para cabelo “ruim”. Aos 13 anos, porém, o pior: a diretora da escola confiscou minha dissertação com receio de que vencesse um concurso, e isso tornasse uma aluna negra a representante da instituição no estado. Felizmente havia uma Iara Vieira no caminho. A professora poetisa desengavetou o crime, a banca me deu o prêmio, e meu pai me tirou da escola.
O trabalho que realizo hoje na educação e minha presença no ambiente cultural de Sergipe apontam para a construção de um pensamento intelectual mais maduro, aquele que não prejulga e que respeita as diferenças que caracterizam negros, brancos, coloridos.

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